— A hora dos velhinhos chegou.
É o que diz o novo patrono da Feira do Livro de Porto Alegre. Depois de Carlos Nejar, 85 anos, e Tabajara Ruas, 82, é a vez de assumir a chave da Praça da Alfândega o escritor alegretense Sergio Faraco, 84, com uma carreira literária de mais 50 anos, desde a estreia com Idolatria (1970).
A Câmara Rio-Grandense do Livro corrige uma injustiça histórica. O nosso maior contista deveria ter sido homenageado antes. A convocação chega com atraso de duas décadas.
Em compensação, a lembrança acontece na comemoração das sete décadas da Feira, num ano simbólico, de retomada cultural após a enchente sem precedentes do último maio.
Faraco não é bom, mas muito bom. Não é muito bom, mas ótimo. Não é ótimo, é mais que perfeito.
Ao lado de Dalton Trevisan (PR) e Luiz Vilela (MG), forma a tríplice coroa viva da narrativa curta.
Seus livros reunidos em Contos Completos (1995) são obrigatórios para todo escritor iniciante ou leitor inveterado.
Não há quem melhor represente o nosso humor amargo, as nossas bravatas, o comportamento matuto da fronteira, as esperanças de quem no pampa pouco tem e tudo sonha.
Ele é um perfeccionista declarado, tanto que não escreve mais contos desde 2001.
— Não posso apelar para uma linha de menor resistência, explica.
Para se ter ideia do capricho de Faraco — que é pai de três filhos e casado a vida inteira com Cybele —, ele começou o conto “Um dia de glória” quando a sua filha Bianca nasceu e apenas terminou quando ela estava concluindo a residência em Neurologia.
Aliás, “Um dia de glória” revela a sua maestria. Arranca fortes emoções de uma cena que poderia ser monótona. Retrata a expectativa de uma família no dia da chegada do roupeiro novo, adquirido em infindáveis prestações.
O desfecho faz todo mundo pensar em sua história de imensas privações e raras — porém inesquecíveis — realizações.
“As crianças já dormiam. Luíza e o marido, na cama, tinham deixado a luz acessa e olhavam para o roupeiro novo com orgulho, reverência e um receio incerto.
Quando apagaram a luz, bem mais tarde do que costumavam, o roupeiro resplandecia na penumbra, como envolto numa aura.
— Que coisa — disse Luíza —, dá até uma vontade de rezar, não dá?
— Dá — ele disse.”
Ter a chance de cumprimentar Faraco na septuagenária Feira é o equivalente a ter conhecido Simões Lopes Neto em seu tempo, no fim do século 19.
Não estou exagerando.
Uma anedota real ilustra o quanto ele é o mais gaúcho de nossos autores universais.
Ao ganhar o Prêmio Nacional de Ficção da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1999, no Rio de Janeiro, por Dançar Tango em Porto Alegre, ele encontrou um dos jurados do concurso, o intelectual carioca Celso Furtado, afamado pelo tomo Formação Econômica do Brasil.
Furtado tentou fazer um elogio:
— Gostei muito do livro, mas a primeira parte só com dicionário para entender.
Faraco respondeu com uma brincadeira. Afinal, não se depende de dicionário para ler Guimarães Rosa ou Jorge Amado.
— Para ler as outras partes, o Aurélio deve ter lhe bastado.
Furtado virou as costas achando que havia sido uma grosseria. Não percebeu a distinção da conversa. Recebera uma amostra de nossa ironia, a fina flor xucra de nosso pago.
Isso que o economista não inventou de jogar bilhar com Faraco. Daí seria uma verdadeira sinuca de bico.