Sou casado com uma mineira. O que significa que tive que aprender o seu idioma e ela, o meu.
Enfrentamos nossos perrengues regionais no início da relação, em Porto Alegre. Nosso “bochincho”. Aliás, já fui obrigado a explicar: desordem, briga, bagunça, confusão.
Nosso impasse diplomático não aconteceu devido ao clássico caso de chamar pão de “cacetinho”, ou de denotar susto dizendo “caiu os butiá do bolso”, ou de apelidar o dinheiro de “pilas”, ou de declarar “pior” com o sentido de “melhor assim”.
Recém morávamos juntos e Beatriz não localizava a sua escova de cabelo.
Minha memória fotográfica de espaços não costuma falhar:
— Eu vi no bidê!
Ela surgiu toda desaforada em minha frente:
— Por que minha escova estaria num lugar sujo como o bidê?
Eu respondi:
— Como assim, sujo? Não notei que estava sujo. Você que deixou ali ontem, depois de secar os cabelos.
— Eu não colocaria minha escova no bidê — ela retrucou.
— Mas você sempre usa o bidê — eu insisti.
— Justamente, ele é sujo porque sempre usamos — ela não se deu por vencida.
Eu fiquei com uma pulga atrás da orelha, bateu aquele medinho de que ela fosse um pouco maluca, aquele receio de que apresentasse algum transtorno obsessivo-compulsivo que eu não havia reparado até então: será que eu precisaria passar um pano com lustra-móveis a cada manhã no bidê? Ela se incomodava com a simples poeira de um dia?
Voltei ao trabalho no escritório. Não é que ela reapareceu martelando o assunto em meus ouvidos, alegando que o bidê estava vazio, que não tinha achado a escova?
— Ué, tentei ajudar. Deve ter posto em outro canto.
— Mas quero entender: desde quando bidê é local apropriado para deixar objetos? Você é sem assunto, está brincando comigo? É nojento demais, xexelento descobrir que aquilo que passo em meus cabelos está no bidê. Não sou doida. É muito jacu, cruz-credo, vorta. Você tem um parafuso a menos. Falta um pouco de higiene, nuuu.
— Nojento, por quê? Eu vivo deixando livros no bidê.
— Nunca mais vou ler nenhuma obra que você me emprestar. Chega de inventar moda.
— Não tenho culpa de suas manias, cada um tem o seu bidê. Eu cuido do meu, você cuida do seu.
Estranhei que Beatriz passou a sair para o trabalho com os cabelos molhados, sem mais usar a escova com o secador.
Foram dois dias de birra, de silêncio, de não nos cumprimentarmos direito de manhã, de fazermos a refeição em aposentos diferentes.
Até tê um troço e rachá os bico ao descobrirmos a origem do mal-entendido.
Foram muitas gaitadas de provocar inveja em Borghetti.
No Rio Grande do Sul, nomeamos a mesinha de cabeceira da cama de “bidê”. Para o mineiro, bidê serve para lavar as partes íntimas, é apenas bebedouro de traseiro.
Meu discurso se destinava ao quarto, o dela, ao banheiro.
Ela não parava de exclamar:
— Que marmota, que marmota, que marmota!
Não quis perguntar se ela estava me ofendendo de novo.