Na minha infância, durante a comemoração da Semana Farroupilha, participei do desfile em Porto Alegre. Andei de cavalo sob aplausos do público ao redor.
É muito diferente enxergar a cidade de cima da montaria. Você está triunfante na cavalgadura. Tem um olhar superior, confiante, esperançoso, acima de qualquer problema. Parece que o cavalo o protege das banalidades, dos medos domésticos, dos perigos menores. Você se sente blindado em contato com a sela, e até invencível. Os arranha-céus, as bandeiras tremulantes, os pássaros reverenciam a sua passagem. Há altura no ritmo cadenciado. Os cachorros o seguem como súditos, como devotos dos seus passos.
Eu me via orgulhoso de pilcha, segurando a rédea entre os dedos mindinho e anelar da mão esquerda enquanto acenava com a direita. Porto Alegre resplandecia no céu anil, sem nuvens, e na pelagem brilhante do animal.
Nem na garupa de meu pai em show de música tradicionalista, eu me achei tão alto.
Eu troteava com calma, curtindo cada momento, cada metro daquele passeio.
No mês de maio, tivemos a experiência de enxergar Porto Alegre de um segundo prisma: de dentro de canoas.
Foi o ângulo mais triste e aflitivo da nossa cidadania, a perspectiva mais assustadora e desamparada, com tudo o que amamos alagado: o Mercado Público, a Praça da Alfândega, o Gasômetro, a rodoviária, o aeroporto. Todos os nossos marcos históricos e culturais submersos, todos os nossos cartões postais desfigurados.
Ao contrário do olhar de cima do cavalo, o olhar de dentro da canoa é baixo, raso. Você é achatado pelas circunstâncias, deslocando-se de modo proibido e antinatural pela sua realidade habitual. Entra na contramão, não obedece às placas, invade corredores de ônibus. No território das águas, não há limites e leis, não há respeito de margens. É posto numa posição de clandestinidade, de socorro, de suplício. Ou foge de sua casa, ou resgata flagelados.
Só tem o remo ou o motor para impor uma direção, e sofre, ainda assim, com a ameaça dos escombros, que podem cindir o casco. São restos de residências, de portas, de pontes, entulhos inconcebíveis e fora de lugar boiando. Você desenvolve uma atenção para a coloração da correnteza, com a necessidade extrema de sempre se desviar de obstáculos irreconhecíveis.
Não existe como não se considerar diminuído, fragilizado com o colete salva-vidas, inchado de abandono, rebaixado pelos acontecimentos imprevisíveis da natureza, impotente diante da força das fatalidades.
Você se vê arrastado, submisso, dominado: o tempo não passa, a chuva não passa, o pesadelo não passa.
É uma outra Porto Alegre, estranha e turva. A mesma cidade, totalmente distinta. Uma caçula do ocaso e da sombra, que nasceu no temporal de 1941, bem depois do nosso início ensolarado em 1772.
Ao transitar por baixo de viadutos e passarelas, aturdindo-se com o nível do rio — um pequeno Gulliver diante das coisas e da cartografia —, a sensação é que você ingressou num filme distópico e descortina uma paisagem apocalíptica.
Com o coração na garganta, você não passeia. Mostra-se preocupado com os sons, em compenetrado silêncio, para ouvir melhor com os olhos, mirando com compaixão as fachadas destruídas e descascadas pelas cheias, mirando os edifícios em busca de pontos humanos nas janelas e nas sacadas, para ver se alguém precisa de ajuda, se algum conterrâneo ficou para trás.