Com tantas vidas perdidas, com tantas casas arruinadas, com tantos sonhos desabados, com tantos móveis arrastados pelas cheias, pode soar insignificante a preocupação com fotografias de família.
Mas há fotografias que são testemunhos de momentos inesquecíveis de nossa vida.
Fotografias de papel, que não estão no celular, que não estão nos computadores: fotografias sem cópia, filhas únicas da alegria.
Cenas irrepetíveis de casamento, de batismo, de avós que já partiram, de filhos pequenos, de festas de aniversário.
Registros insubstituíveis da casa cheia, que fazem falta na hora em que a saudade aperta.
Sabendo que milhares de pessoas tiveram seus álbuns de estimação danificados pela enchente, o Núcleo de Antropologia Visual da UFRGS criou um projeto de pura empatia: a restauração gratuita das imagens.
É uma iniciativa quixotesca, sem espaço, sem equipe suficiente, sem verba, mas com toda a força de vontade.
— Aulas estão paradas, mas a UFRGS internamente está a mil no amparo dos gaúchos — avalia a coordenadora Fabiene Gama, professora do Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social da UFRGS.
O núcleo, formado presencialmente por quinze professores e estudantes da Comunicação e da Antropologia, viu-se tocado pelas histórias durante o voluntariado no abrigo Luciana de Abreu.
— Quando os flagelados retornavam para o lar destruído pelas águas, sofriam com o extravio dos seus documentos emocionais. Foi o momento que tivemos a ideia da campanha — explica Fabiene.
O projeto, intitulado Resgate de Memórias, surgiu com o objetivo de oferecer uma segunda chance para as gavetas e baús submersos. Tanto que seu bordão é “Não jogue suas fotos fora. Queremos te ajudar a salvá-las”.
O anúncio, que acolhia fotos molhadas para avaliação e recuperação, viralizou nas redes sociais.
Desde o início da ação no domingo (2), mais de quinhentas famílias por dia, de todo o estado, entraram em contato pelo WhatsApp (51) 998874374.
— Houve primeiro o ímpeto de abraçar o mundo. Agora, diante do volume incessante de solicitações, estamos promovendo reuniões para viabilizar e executar o auxílio, talvez estabelecendo parcerias com outros laboratórios de extensão — esclarece Fabiene.
A tarefa, aparentemente simples, é tão complexa quanto retocar pinturas famosas. É necessário esterilizar e reconstituir documentos contaminados pela lama.
— Eu entendo a grandeza simbólica do gesto. Se fosse comigo, eu gostaria de salvar os primeiros desenhos da filha, os diários da maternidade — diz Fabiene, mãe de Stella, 5 anos.
Mais do que um duelo entre luz e sombra, a fotografia é o nosso espelho para enxergar o passado. O que sobrou do passado.
Parece pouco, mas significa muito para o apego. É preservar a memória do amor.