Um incêndio estendeu o escuro da noite e cobriu a capital gaúcha de trevas e mortes durante a manhã de sexta-feira (26).
Dez pessoas morreram, 15 ficaram feridas, num dos focos de fogo mais incompreensíveis dos últimos tempos, que atingiu uma pousada na avenida Farrapos, entre as ruas Garibaldi e Doutor Barros Cassal, próximo a um posto de combustíveis. Os bombeiros chegaram por volta das 2h20 da madrugada.
Trata-se do segundo mais letal incêndio de Porto Alegre, apenas atrás da tragédia no emblemático prédio da loja Renner, na tarde de 27 de abril de 1976 (quase a mesma data), que matou 41 pessoas e deixou dezenas de feridos.
Não há como disfarçar a indignação. É sempre um luto carregado de raiva, bílis e injustiça.
Será que são necessários 10 falecimentos, 10 famílias enlutadas para agora investigarmos se o hotelzinho realmente precisava do Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI)?
Se a burocracia está em ordem, se a documentação está em dia, de quem é a culpa? Como uma estrutura de tantos riscos evidentes é aprovada para operar como pousada, na condição de alojamento de baixo risco, com a dispensa de alvará e autorização de funcionamento?
Será consequência da brandura da lei, engessando a fiscalização a ponto de esta só atestar falhas de monitoria depois de um desastre, quando já é tarde demais, quando existe uma fileira de covas abertas e caixões em procissão?
No albergue de três pavimentos, os modestos quartos eram colados uns nos outros, revestidos de madeira, sem a devida e adequada ventilação.
Não tinha como fugir. Não tinha como escapar. Quem se via exausto, em sono profundo, jamais despertou.
Era uma ratoeira, um labirinto com único acesso pelas escadas, desprovido de plano e sinalização para evacuação rápida.
Pela vista aérea dos destroços da edificação, da qual permaneceu somente o esqueleto carbonizado, percebe-se que se resumia a uma panela de pressão, com condições propícias ao alastramento das chamas e a sucessivas explosões.
Não aprendemos nada com as centenas de óbitos de estudantes em Santa Maria, na boate Kiss. A amnésia repete as dores.
Não aprendemos nada com as centenas de óbitos de estudantes em Santa Maria, na boate Kiss. A amnésia repete as dores. O esquecimento reutiliza os scripts de falta de segurança, comprometendo covardemente vidas inocentes, que pagaram um quarto para pernoite, a cinco minutos da Rodoviária, jurando que se achavam protegidas.
Já que o espaço vinha sendo usado pela Secretaria de Assistência Social como moradia para desabrigados e desassistidos, a gravidade da ocorrência aumenta.
O contrato público com a rede de pousadas, que possui outros três endereços em Porto Alegre, recebeu renovação com a prefeitura em dezembro do ano passado.
Que licitação é essa que repassa R$ 2,7 milhões por 360 vagas naquilo que acabaria sendo um cemitério?
Com certeza, diante da precariedade das instalações, os moradores de rua, em situação de vulnerabilidade, estariam mais resguardados dormindo ao relento, debaixo das marquises.
Quantos gritos de socorro terminaram afônicos pela toxicidade da fumaça? Quantos assentos de ônibus seguiram vagos, sem o seu passageiro regressando ao lar no interior?
Tudo está sendo apurado, tudo é recente, mas, pelos indícios até então, dá para concluir que o incêndio poderia ter sido facilmente evitado.
Se não foi alguém que o provocou de propósito, a prefeitura deve oferecer uma resposta, pois o incêndio ocorreu sob sua autorização, sob sua tutela, num acordo em vigor de albergamento, no centro da cidade, numa de nossas mais movimentadas avenidas.
Queremos saber. Não basta oferecer os pêsames a Marcelo Wagner Schelech, 56 anos, um dos sobreviventes, que não conseguiu socorrer sua irmã, que não teve chance de salvá-la, que carregará o trauma de ter saído dali sozinho. Ele carece de uma explicação.