Sonhei com Paulo Sant’Ana. Estávamos na redação do jornal. Eu permanecia quietinho na frente do computador. A editora Marta Gleich me cutucou:
— Já contou a novidade para o Sant’Ana? O que vamos fazer para homenageá-lo?
Eu tinha consciência de que ele estava morto, enterrado no Cemitério Ecumênico João XXIII, mas também percebia que ele estava perto de mim, em sua bancada.
Tomei coragem e me aproximei dele.
Ele me acolheu com veemente desinteresse, olhando para os lados, com a sua vesguice sonhadora e seletiva, como sempre recebia quem iria fazer uma pergunta para ele. Demorava a prestar atenção. Precisava surgir uma ideia atraente para despertá-lo para a conversa.
Eu disse:
— Combinei com os colegas de escrever um texto junto com você.
Ele retrucou com sarcasmo:
— Esqueceram que estou morto?
Eu respondi:
— Você até pode estar, meu amigo, mas suas palavras não.
Foi o momento em que ele acordou para mim.
Pensei que havia resolvido a sua resistência, e faríamos o tributo lado a lado.
Daí ele me questionou:
— Quem começa, quem termina o texto?
Diante da saia justa, busquei contemporizar:
— Um não existe sem o outro. O começo é tão difícil quanto o final, pois você precisa vencer o silêncio. O final é tão difícil quanto o começo, porque você precisa vencer o que foi dito antes.
Ele gargalhou para dentro. Tossiu, gargalhou de novo para terminar a risada que começara:
— Então, eu termino, por vaidade, já que sou de longe melhor cronista que você.
Eu ri junto:
— Eu sou um cronista do perto, Sant’Ana. E sou seu amigo, mesmo você não sabendo o quanto sou seu amigo. Não é assim, não temos amigos secretos?
"Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos! Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles… Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos! Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende de suas existências…
A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem.
Essa mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida. Porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles!
Eles não iriam acreditar! Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem que estão incluídos na sagrada relação dos meus amigos, mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não o declare e não os procure.
Às vezes, quando os procuro, noto que eles não têm noção de como me são necessários, de como são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque fazem parte do mundo que eu, tremulamente, construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.
Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado. Se todos morrerem, eu desabo! Por isso é que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles e me envergonho porque essa minha prece é, em síntese, dirigida ao meu bem-estar. Ela é, talvez, fruto do meu egoísmo.
Por vezes, mergulho em pensamento sobre alguns deles. Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando daquele prazer… Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos e, principalmente, os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber que são meus verdadeiros amigos!
A gente não faz amigos, reconhece-os!
Paulo Sant’Ana"