Cultivo os meus mortos no jardim da memória. Rego com as minhas lágrimas, com um pouco de sal da minha existência.
Duas perdas irreparáveis foram Mario Quintana e Paulo Sant’Ana. Ambos eram jornalistas de redação, ambos temperamentais e espirituosos, ambos folclóricos, autores de chistes e bravatas maravilhosos.
Eu comecei a ler o jornal pela última página, neste espaço que escrevo, devido ao Sant’Ana. Mesmo que ele fosse gremista fanático, mesmo que eu tivesse que suportar as suas flautas ou suas fantasias de baiana, havia nele algo de surpreendente, mágico, cardíaco: sua paixão pela vida. Ele falava corajosamente de si, e assim falava de todos nós.
Minha idolatria por Quintana veio antes, pelos seus livros. A primeira obra autografada que recebi acabou sendo dele, logo no meu nascimento, inaugurando a minha biblioteca.
Quintana não era casado, morava solitário em hotéis, caminhava pelo centro da cidade como se fosse seu quintal, implicava graciosamente com tudo e com todos como uma forma de prosperar a inteligência e apenas se acalmava com cafezinho e quindim.
Apesar do humor característico, o seu eu lírico se mostrava melancólico. Ele meditava sobre o fim, a solidão, a simplicidade das despedidas.
Em um dos seus poemas mais comoventes, ele se imaginava defunto:
“A morte é a libertação total: a morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos...”.
Além da razão poética — não se importar em dormir com sapatos —, existe uma verdade racional: ninguém é enterrado de pés descalços.
Sant’Ana esteve no velório de Quintana na Assembleia Legislativa, naquela primeira semana fatídica de maio de 1994, em que faleceram o nosso grande bardo e também o piloto de Fórmula 1 número um de nossos corações, Ayrton Senna.
O colunista de ZH apareceu de madrugada na cerimônia de despedida. Quintana estava realmente com sapatos lustrosos, brilhantes; parecia que recém tinha recebido uma escovinha de engraxate da Praça da Alfândega, como costumava fazer.
Foi quando Paulo Sant’Ana percebeu que contava com raros cigarros para atravessar a noite. Havia três em sua carteira, que logo seriam consumidos entre um pêsame e outro.
Mas ele notou um movimento estranho dos fãs, que lhe conferiu uma polêmica esperança. Junto de ramalhetes de rosas, os fãs do poeta depositavam cigarros no caixão, num tributo aos suspiros esfumaçados do artista.
Sant’Ana ficou olhando de modo carente aqueles cigarrinhos dando sopa na tampa de vidro, porém logo se censurou por cobiçar os pertences do amigo desencarnado.
Passaram horas, já com fissura, já sabendo que não haveria nenhum estabelecimento aberto. Ele observou que a guarda de confidentes e familiares cochilava nas cadeiras e não se aguentou. Roubou sorrateiramente alguns cigarros.
Fumou com gosto os itens filados, com tragadas fundas misturadas ao incontido riso de travessura transgressora de tabus.
Fumou com gosto os itens filados, com tragadas fundas misturadas ao incontido riso de travessura transgressora de tabus.
A culpa veio depois. Uma vidente mandou uma carta para Sant’Ana afirmando que o espírito de Quintana lhe mandara um recado.
Ele se assustou com o possível conteúdo da conversa psicografada. Só o que faltava ser censurado pela eternidade de alguém.
Mario Quintana dizia:
— Não tem vergonha na cara? Pegou todos os Charm e apenas me deixou os Hollywood com filtro amarelo!
O morto sempre tem a última palavra.