A data era compatível. A letra era inconfundível. O estilo era incomparável. Na última semana, um poema inédito de Mario Quintana foi descoberto no meio de um livro antigo do próprio autor. Aqueles versos atingiram em cheio os corações dos leitores do escritor alegretense, que receberam de braços abertos uma nova obra do gaúcho, que deixou de viver na Terra para ingressar no panteão dos imortais das palavras há quase 28 anos. Intitulado Canção do Primeiro do Ano, o texto é datado de 1º de janeiro de 1941, quando o escriba tinha apenas 34 anos — ele nasceu em 30 de julho de 1906.
Mas como é possível que, mesmo após quase três décadas da morte de um dos maiores escritores do Estado e um ícone da literatura nacional, uma obra dele possa ter passado batida, uma vez que o seu acervo está bem guardado e cuidado no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro? Existem duas possibilidades: ou ele esqueceu onde guardou o poema ou, simplesmente, não gostou de seu trabalho e não quis publicá-lo. Pelo menos não inteiro.
— Foi bem interessante acharem isso agora, porque tenho quase certeza de que ele não quis publicar. Por isso, estava dentro do livro, escondidinho. Ele deixou lá como carta na manga para aproveitar alguma coisa — destaca a fotógrafa Dulce Helfer, uma das melhores amigas do poeta em sua última década de vida.
E ela, que tem a obra do escritor na ponta da língua, uma vez que foi responsável por dois livros sobre o poeta, assim que Canção do Primeiro do Ano veio a público, identificou versos do poema inédito que foram "reaproveitados" em outro trabalho de Quintana, Canção do Dia de Sempre, que faz parte da publicação Canções.
Na sexta estrofe do poema recém-descoberto, o poeta escreve "E eu vivo só de momentos / Sou como as nuvens do céu... / Prendi a rosa dos ventos / Na fita do meu chapéu". Em Canção do Dia de Sempre, Quintana reescreveu os versos "Viver tão só de momentos / Como estas nuvens no céu..." e "E a rosa louca dos ventos / Presa à copa do chapéu" para ocupar, respectivamente, a segunda e quarta estrofes de seu poema.
O final dos dois trabalhos também mostra que uma obra deriva da outra. Enquanto Primeiro do Ano termina com a estrofe "E, de novo, sem lembrança / Das outras vezes perdidas / Atiro a rosa do sonho / Em tuas mãos distraídas...", Dia de Sempre tem desfecho quase igual: "E sem nenhuma lembrança / Das outras vezes perdidas / Atiro a rosa do sonho / Nas tuas mãos distraídas...".
Segundo Dulce, o modus operandi de Quintana era assim: ele, muitas vezes, em sua prancheta, escrevia um texto, mas nem sempre gostava do resultado depois de o reler no dia seguinte. Assim, usava aquela obra para retirar partes com as quais havia simpatizado e formar uma nova. Ou, então, o poeta, frequentemente, esquecia o local onde guardava os seus trabalhos, mas gravava na memória os versos mais marcantes, usando-os para tentar replicar o poema que estava perdido. Canção do Primeiro do Ano pode se encaixar em qualquer um dos casos, diz a amiga.
O poema inédito foi doado na última segunda-feira (24) ao acervo da Biblioteca Pública do Estado, após o manuscrito ter sido adquirido pela Associação de Amigos da Biblioteca Pública do Estado. A peça foi entregue juntamente com o livro onde estava guardada, uma edição de Poemas, do próprio autor. Em breve, ambos estarão em exposição.
Por perto
Mario Quintana e Dulce Helfer se conheceram no começo de 1985, quase uma década antes de o poeta morrer. Ela, que na época trabalhava na Secretaria de Cultura do RS — e, logo em seguida, em Zero Hora — diz que não recorda exatamente o que motivou o primeiro encontro com o poeta. Porém, destacou que, na mesma hora, identificou-se com o escritor.
— É uma amizade que vem e a gente não sabe de onde, uma afinidade que tu crias na mesma hora. É uma coisa inexplicável. E o Mario é uma dessas boas coisas que me aconteceram, porque na mesma hora a gente se identificou. E ele me disse: "Vem tomar um café comigo uma hora dessas" — conta a fotógrafa, que voltou para o café dois dias depois.
Ela visitava o escriba três vezes por semana. Primeiro, no diminuto quarto no Hotel Royal, onde ele reclamava do tamanho, dizendo que "não era joia para ficar dentro de caixinha". Depois, quando o poeta se mudou para o seu derradeiro lar, o Porto Alegre Residence Hotel, local mais espaçoso e com um parque próximo, onde adorava sentar com a amiga para observar as crianças brincando, longe de assédios.
Segundo Dulce, apesar da aparência simpática e doce, "ele não era um velhinho querido, não". E, mesmo assim, ela registrou em fotos sensíveis os últimos 10 anos do escritor — que gostava de ligar, ao lado da amiga Sandra Ritzel, para a redação de Zero Hora no dia do aniversário de Dulce para cantar um Parabéns a Você sempre desafinado. Anos depois, ela descobriu que ele combinava de entoar a canção fora do tom apenas para a sacanear. "Espirituoso".
Dulce Helfer era uma das poucas amigas que Mario Quintana tinha. Assim, por não ter um círculo social muito grande e priorizar ficar em seu quarto, ele não costumava presentear pessoas com poemas. Por conta disso, a fotógrafa não acredita que muitas obras inéditas do poeta estão perdidas por aí. Caso alguma apareça, será como Canção do Primeiro do Ano, ao acaso, escondida, provavelmente pelo próprio autor, dentro de um livro antigo. Mais poético do que isso, impossível.