Meus cachorros da infância somente comiam polenta.
Nos anos 70 e 80, não havia a tradição da nutrição especial, dos biscoitos coloridos e do acervo gastronômico dos pet shops.
Perdoe a minha família pela alimentação prejudicial, decorrente dos diferentes hábitos de uma época. Jamais repetiríamos tal descalabro hoje.
É paradoxal pensar que, por um lado, os mascotes eram humanizados na alimentação — comiam o que comíamos —, mas, por outro, não moravam dentro de casa — dormiam no pátio, soltos, e tomavam banho no tanque da lavanderia.
Eles pertenciam a um mundo mais rural. Não tinham permissão de se deitar no sofá ou na cama. Nem nos preocupávamos em levá-los para fazer xixi.
No inverno, recebiam restos de cobertores e panos para se defenderem do frio. No verão, aproveitavam os tapetes secando ao sol.
Cachorro se caracterizava pela independência. Era meio lobo, meio de rua. Ele se virava sozinho, controlava o movimento no portão, protegia o lar das ameaças de invasão. Cuidava mais do que recebia cuidado.
Minha mãe suava na cozinha de madrugada para preparar o angu amarelo. Fazia um panelaço de albergue, de rifa escolar. Sua colher de pau não descansava por um minuto. Naquela hora, não atendia ninguém, desprezava telefone, campainha, pedido de divórcio. A polenta não podia parar, senão endurecia.
Os corredores cheiravam a polenta. Os lençóis estendidos no varal cheiravam a polenta. Os vizinhos cheiravam a polenta.
Minha infância foi uma espécie de puxadinho de cantina devido à alimentação canina.
Os dois cockers viviam confinados a um mesmo cardápio, a se embuchar eternamente com o prato italiano. Seus latidos já tinham sotaque.
A mãe realizava a tarefa a cada quinze dias. Congelava marmitas e ia dando um pouco por dia. A polenta caía inteira, quadrada do pote para as gamelas. Os cachorros não festejavam o almoço e a janta, sequer abanavam o rabo. Aproximavam-se da refeição com resignação. Deveriam estar enfarados do odor, do sabor e da falta de originalidade.
Nossos cachorros sonhavam com bifes, com picanha, com o osso da costela.
Até que adotamos um vira-lata com manchas amarelas. Ele apareceu em nossa porta pedindo comida, tonto, perdido, triste e sarnento. Logo pensamos que ele seria o antídoto para acabar com o menu monotemático, a virada de mesa, o vento da mudança, a alegria, e o batizamos de Polenta.
Explicamos para a mãe que o Polenta não poderia comer polenta. Seria uma crise na sua personalidade.
Imagine o brado materno servindo a comidinha: “olha a polenta!”. E o Polenta viria faceiro, achando que ela o chamava.
Nossa alegação surtiu efeito.
Foi assim, com muito empenho, que meus irmãos e eu convencemos a mãe a acabar com a tortura que lotava o congelador, maltratava o estômago e a pelagem dos animais e enjoava a tripulação.
Reunimos nossas economias, quebramos os porquinhos e rateamos um saco gigante de ração.
Comemoramos a modernização com uma fotografia festiva: os cockers lambendo com gosto o rosto do Polenta, seu salvador.