Você mostra que ama alguém quando oferece o que tem de mais precioso para acalmar o desamparo, o sofrimento, a dor do outro.
Escolhe uma de suas paixões para combater a desvalia alheia. O afeto torna-se mais importante do que as posses.
Pertences passam, suas pessoas prediletas ficam.
Cifras não têm mais sentido perto do socorro a uma desilusão.
Não chamaria de sacrifício, e sim de tomada de consciência do patrimônio da intimidade.
Você está tão angustiado em ajudar que cria estranhas compensações, inventa saídas emocionais. As crianças são craques em soluções caseiras.
Eu experimentei essa descoberta existencial na infância.
De passatempo, eu cultivava uma coleção de selos. Não era a mais completa, a mais cara, a mais profissional como a do meu irmão Rodrigo, dois anos mais velho do que eu. Mas estava começando de modo promissor: comprava cartelas nas bancas da Rodoviária de Porto Alegre com os trocos que economizava lustrando os sapatos da família. Já acumulava centenas de selos, alguns de graça, retirados das correspondências recebidas pelo meu pai.
Minha irmã Carla, por sua vez, colecionava papel de carta havia vários anos.
As folhas ostentavam um perfume doce, inebriante, com estampas de corações, flores, frutas (moranguinho, pesseguinho, maçãzinha).
O conjunto correspondia a um pomar, a uma floresta crescendo vertiginosamente nas gavetas de sua cômoda.
Ela possuía uma papelaria invejável, com gramaturas e cores diversas, e cheiros de xampu e chiclete para abençoar as mãos.
Perseguia novos produtos nas livrarias, mais obcecada em atualizar seu catálogo do que eu e Rodrigo com a nossa filatelia.
Ao completar um mês de namoro com seu colega da oitava série, amargou um ponto final no seu amor.
Num acesso de fúria, jogou todas as suas cartas fora.
Encontrei, por acaso, no lixo do escritório, suas peças raras e cheias de detalhes, salpicadas de Snoopy, Hello Kitty e Ursinhos Carinhosos.
Ela chorava pelo fim do relacionamento, com a porta fechada do quarto.
Sentia-se ingênua, boba, facilmente enganada, devastada pelo término do seu primeiro romance sério.
O descarte foi uma maneira simbólica de sair da infância.
Eu bati em sua porta, e apenas ouvi um grito:
— Me deixe em paz!
Enfiei pelo vão da porta as suas cartas devidamente alisadas e restauradas com o ferro de passar.
Coloquei a minha coleção dentro delas.
Esperei até Carla vir falar comigo. Aconteceu no dia seguinte.
Ela perguntou por que eu tinha feito aquilo. Eu respondi:
— Agora você tem selos para escrever uma carta e mandá-lo para onde ele merece.