Vimos, há pouco mais de uma semana, que uma mulher foi acudida da violência doméstica porque ligou para a Brigada Militar pedindo pizza e o soldado percebeu que era um código cifrado de socorro.
Ninguém encomendaria uma pizza “com urgência”, ainda que estivesse desmaiando de fome.
Houve sensibilidade da equipe de emergência para detectar a sutil anormalidade.
No incidente, um homem de 45 anos com antecedentes criminais, que estava descumprindo a medida protetiva, acabou preso em flagrante pela BM em Tramandaí, no Litoral Norte, por agressão a socos, chutes e puxões de cabelo.
Lembro esse episódio para ilustrar a importância de não fazer trotes ao 190, já que muitos dos apelos acontecem em linguagem indireta.
Como a vítima, na maioria das vezes, encontra-se acompanhada do agressor, absolutamente coagida, sem saída, com a porta fechada do seu confinamento psicológico, precisa recorrer a subterfúgios, fingindo que telefona a um estabelecimento comercial, a um familiar ou a um amigo.
Não tem como ser objetiva debaixo das garras da agressividade. O medo grita. É um fingimento da autopreservação, uma dissimulação convincente para sair dali de algum jeito.
Por um instante, deve subir no palco da fantasia, disfarçar o timbre nervoso, para recuperar o papel de sua existência. Não pode gaguejar, gemer, chorar, entregar o que sente naquelas breves e decisivas frases de troca de impressões.
Corresponde a uma encenação complexa, que depende de absoluto controle emocional em meio ao mais grave caos familiar.
Nomes trocados passam a ser comuns para preservar o sigilo da comunicação. O “alô” jamais será dado para a Brigada Militar, porém para um interlocutor inventado no calor do improviso.
É fundamental entender que a Sala de Operações não vai desprezar nenhum chamado. Tanto faz se é um relato picaresco ou legítimo, um meme ou solicitação de auxílio. Em ambos os casos, haverá sempre o rigor da escuta, o extremo de vida ou morte.
Porque os policiais em serviço são treinados para uma realidade paralela, para decifrar indícios de truculência detrás das aparências, a partir de conversas banais. Toda palavra é dissecada com o apuro do enigma, da charada.
A zombaria desvia o efetivo e coloca a patrulha no lugar errado, enquanto a verdadeira ocorrência fica desassistida.
Se você faz uma brincadeira indevida a um serviço indispensável de utilidade pública, ocupa o tempo precioso que serviria para atender uma tragédia, desperdiça o tempo necessário para garantir uma sobrevivência.
Minutos podem ser fatais. Ligações falsas matam pessoais reais.
De acordo com a Brigada Militar, das 274.728 ligações recebidas no primeiro semestre deste ano em Porto Alegre, 15,3 mil foram trotes e outras 15 mil foram enganos. Ou seja, 11% do atendimento representa trabalho perdido.
Prevalece também uma alta taxa de abandono do telefonema. Muitos começam o desabafo e não se veem em condições de segui-lo. Cerca de 100 mil ligações desembocam no mudo ou desligado.
A zombaria desvia o efetivo e coloca a patrulha no lugar errado, enquanto a verdadeira ocorrência fica desassistida.
Você não está ocupando apenas uma linha, mas bloqueando a liberdade, o alívio, o amparo, a luz do sol de alguém que sofre em completo isolamento.