É uma das tarefas mais complexas de desapego ter que desocupar um imóvel quando pai ou mãe morre. Pois é uma limpeza terceirizada e intrusa.
Você não tem o olhar de quem partiu para selecionar o que é importante. O que está lá, se não foi descartado em vida, é fundamental para aquele que morava ali.
É um desmoronamento de objetos, uma avalanche de detalhes, que você não tem ideia de como dar conta ou onde colocar.
Abre os armários e vêm livros anotados, diários, cadernos de estudos, diplomas, certificados de cursos, passaporte, correspondências trocadas entre amigos, postais, fotografias.
Nunca passou pela sua cabeça e pelo seu coração que existia tanta tralha, tanto acúmulo de vivências. Nunca sofreu assim com seus próprios fretes e mudanças. Neles, poderia jogar algo fora sem dó nem piedade. Aqui, agora, de modo nenhum. Não se trata de suas escolhas: cada item geme ao seu toque, como se, dentro dele, houvesse dobradiças enferrujadas.
Não percebe que já se encontra sentado no chão durante horas, analisando folha por folha, tentando se encaixar naquela biografia, tentando esperar o momento de seu nascimento.
Não pode desovar as gavetas e fazer uma fogueira. Está mexendo nos sonhos e nas esperanças de uma pessoa predileta. É o seu pai, é a sua mãe, não é qualquer um.
A triagem exige paciência para não descartar injustamente um fato marcante, um talismã, uma preciosidade individual.
Existe uma curiosidade para ler tudo e descobrir informações novas do falecido ou falecida. Ao mesmo tempo, arca com a pressa característica da dor para não se prender ao passado, para não se afogar nas lembranças e despertar traumas e medos.
É capaz de reservar dez por cento, vinte por cento do material encontrado para sua casa, aquilo que combina com o seu gosto ou com o seu temperamento. Diante do resto, você ficará desorientado para decidir um destino.
Há um violão e você não toca, há um teclado e você não usa, há aparelhos de glicose e de pressão de que você não tem necessidade, há uma decoração de vasos e cristais que são do século passado e você não tem noção do valor.
Para ser fiel ao inventário e definir um fim digno àquele conjunto infinito de peças, conquistado à base do suor e do trabalho de alguém, deveria largar o emprego e se transformar num brechó, pesquisando preços e anunciando na internet.
Essa opção não é viável. Não desfruta de tamanha liberdade de horários.
É uma sensação estranha, hostil, de pegar o que não é seu, mesmo que seja seu por direito de herança.
E também dói vender uma relíquia emocional. Dói se desfazer do que já foi essencial a uma existência.
Experimenta uma confusão de sentimentos, um emaranhado de emoções, um novelo perdido nas patas do caos.
Você separa o radinho de pilha que servia para ouvir futebol e notícias, separa o gravador retrô, separa o três em um fora de linha e, de repente, começa a achar que está roubando-os de seu ente querido. É uma sensação estranha, hostil, de pegar o que não é seu, mesmo que seja seu por direito de herança.
Fogão, geladeira, micro-ondas e sofá, o que forma o mobiliário comum não lhe provoca constrangimento de passá-lo adiante aos mais necessitados. A doação elimina a culpa.
O embargo decorre do legado emocional do acervo: da caligrafia, da devoção por trás da aparência, do amor escondido na usura.
Como se você estivesse matando seus pais pela segunda vez.
Por isso, as múmias no Antigo Egito eram enterradas com os seus pertences.