Nunca peço nada emprestado, não sou bom de devolver pertences. Apresento o dom de procrastinar prazos. Eu me sinto eterno e me aposso indevidamente do que não é meu.
Se estou com algum casaco de um irmão ou algum LP retrô de um amigo, venham buscar em minha casa. Só com oficial de Justiça batendo na porta. Não me lembro de jeito nenhum. O ressarcimento deve acontecer vasculhando o local.
A origem do defeito reside na escola. Eu sempre me dava mal na devolução de livros à biblioteca. Não conferia aquela ficha ao final de cada volume com a data do retorno e a minha assinatura.
Eu simplesmente me esquecia do vencimento. Colocava o livro na cabeceira da cama e já o considerava parte natural da minha vida.
Quando eu o tirava da estante e me dirigia ao balcão para os encaminhamentos formais com a bibliotecária, sete dias pareciam suficientes para terminar a leitura. Tão suficientes que nunca iniciava a leitura.
Era o rei das multas na escola. Vivia negociando um desconto. Pelo menos, ajudei a custear a ampliação do acervo. No fim do ensino médio, cheguei ao constrangimento de ver a minha formatura suspensa caso não devolvesse uma obra. Não tinha noção de onde estava. Até perceber que emprestei a um vizinho. Ou seja, alcancei a proeza de sublocar uma propriedade literária.
Depois, na adolescência, a minha inadimplência migrou para o aluguel de fitas. Eu não resistia às promoções nos cartazes coloridos da vitrine: “leve três fitas, não pague a quarta” ou “leve cinco fitas e devolva em uma semana”. Saía da loja cheio de sacolas brancas, com um orgulho nerd de rato de locadora.
Para o azar dos pais, tornei-me o cliente mais fiel e menos leal.
Facilmente seduzido pelos saldos, sem pensar direito, não consultava o meu tempo disponível. Não contava com duas horas por dia para consumir a montanha de caixinhas. Permanecia com um ou dois títulos virgens dos meus olhos e não me recordava de levá-los no momento de ir à faculdade. Já acumulei um mês de dívidas de diárias em atraso. Quase me encontrei a ponto de assumir o vício e frequentar as sessões dos “Locadores Anônimos”.
O pior desse período era a obrigação de rebobinar as fitas. Jamais rebobinava, eita trabalheira e barulho desnecessários no videocassete.
Agora, com streaming, jurei que estava livre das pendências. Que nada, tudo continuou igual, apesar das novas tecnologias e evolução dos hábitos. Ou eu continuei igual, com a mesma essência distraída e perdulária.
Nos cardápios dos canais fechados, você tem 24h para acabar um filme. Você acha que eu consigo? Óbvio que não. A diferença é que não há multas e que finjo ter assistido.