Concordo com a juíza Monica Ribeiro Teixeira: Roda Viva não é de Chico Buarque. Já é patrimônio da nossa cultura, já é acervo da história do país, já é tesouro do folclore popular.
Alcançou tamanha popularidade que a sua autoria foi transferida para quem a canta.
É uma canção que fala por nós, naquele dom do artista de traduzir as nossas emoções mais secretas, nossas inquietações mais inefáveis.
Pablo Neruda, poeta chileno Nobel de Literatura, em suas memórias de Confesso que vivi, conta que ouviu um poema de sua lavra recitado por pescadores. Fingindo-se de bobo, perguntou quem o tinha feito, qual a sua origem.
Os pescadores responderam: “são palavras do mar, são nossas”.
Talvez o maior feito de um poeta seja transformar a dor individual em pertencimento coletivo.
Roda Viva são murmúrios de nosso oceano, de nossa saudade salgada, de nossas lágrimas de espanto. Suas estrofes chegam na praia dos ouvidos com ondas sonoras aflitas.
Roda Viva é minha, é sua, é de quem sofreu na vida a privação de seus direitos de amor e liberdade.
Partiu, sim, do punho de Chico, por um capricho cronológico. O que prevalece é o resultado, sua herança: foi ela que bombeou o nosso coração para sobreviver por mais de duas décadas até a volta da democracia, como se seus versos fossem nossa aorta.
Os créditos do Ecad vão para Chico por uma questão formal, porém os efeitos terapêuticos atingem a todos.
Existe o manuscrito do autor. Existe o registro fotográfico da sua peça teatral homônima, que foi encenada pelo Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa. Existe a filmagem da primeira apresentação pública da composição no 3º Festival da Música Popular Brasileira, da Record, de 1967, que unicamente aceitava canções originais e inéditas. Nela podemos testemunhar que Chico é Chico cantando no palco com MPB-4 e obtendo o terceiro lugar. Existe o LP, o CD, o DVD, várias gravações no timbre do cantor.
Apesar das provas incontestáveis da paternidade de Roda Viva, concordo com a juíza: o DNA desse samba ainda é nosso, de cada brasileiro.
Porque a música nunca envelheceu. Pode ser entoada como o nosso presente mais imediato, ou como profecia do nosso futuro. O passado serve apenas como um ponto de referência.
Ultrapassa o protesto político contra a ditadura militar. É uma radiografia emocional, ao mesmo tempo engajada e lírica, sobre o desencanto.
Quem já não se percebeu tonto de tanto que o mundo muda e nos rouba a nossa viola e expressão? Quem já não acordou como quem partiu ou morreu? Quem já não se viu em dias estranhos, em que tudo estanca de repente? Quem já não teve a sua roseira mais linda, que cultivou com esmero, levada para longe?
Não adianta recorrer da decisão, meu estimado Chico Buarque, Roda Viva é nossa e jamais iremos devolver.