Na hora de procurar uma aspirina, estranhei que havia cartões, cartolinas imensas ocupando grande parte da gaveta na cabeceira da cama.
O meu primeiro impulso foi questionar: o que a minha esposa inventou de acumular, que lixo era aquele?
Mas, então, vi a minha letra. Não me recordava de ter comprado papéis especiais naquela dimensão.
Fui decifrando o conteúdo e as datas das mensagens. Percebi que traduziam algum presente dado. Caminhei por dentro do labirinto da memória para entender de onde eles vinham, de qual situação, de qual festividade (Dia dos Namorados, aniversário de casamento, Natal?).
É um sacrilégio se livrar de um recado afetivo.
Beatriz tinha recortado as sacolas com dedicatória cada vez que entreguei um mimo para ela. Ela não se livrou nem das sacolas. Passaram a ser parte do presente, parte do momento.
Mesmo aquilo que rabisco correndo - um bilhete com “eu te amo”, ou um comentário espirituoso sobre nós dois, ou uma piada interna - ela vai guardar. Não importa onde eu deixe, na geladeira ou em cima da mesa da cozinha, ela recolhe e preserva. A minha letra impede que ela jogue fora.
Isso é amor. Quando nada que foi escrito pelo outro é rascunho ou algo dispensável. Tudo é legenda de um instante juntos.
Até é possível descartar uma linda embalagem, mas nunca nada que tenha uma frase de carinho, nada que tenha a caligrafia com uma homenagem. A palavra salva. A palavra imortaliza.
É um sacrilégio se livrar de um recado afetivo. Quando você coloca a sua grafia numa superfície, põe um pouco do seu espírito nela. Ainda que seja numa rolha. Ainda que seja num saco de pão. Ainda que seja num guardanapo.
Passa a ser um patrimônio intocável da intimidade. Há um nome ali, uma história, um enredo que protege o apanhado de frases do esquecimento.
Por isso, pais vivem colecionando desenhos e rabiscos de seus filhos sem coragem nenhuma de abrir espaço nos armários.
Não subestime o que é redigido à mão. Um manuscrito é uma outra dimensão para os sentimentos. Dura muito além da utilidade, disponível para incansáveis releituras e visitações.
Aquilo que você anota por alguns minutos acaba virando eternidade para alguém.
Torna-se moldura, porta-retratos, herança. É envernizado pela tato, inviolável ante a erosão do tempo.
Você troca presentes nas lojas, mas não troca cartões, não devolve juras e declarações. Elas sempre são sob medida. Servirão para vestir as suas melhores lembranças.
E, no fim, a minha enxaqueca desapareceu diante de tamanha ternura.