Começaram a corrida eleitoral, a propaganda política, os debates, as camisetas com as carrancas sorridentes dos políticos, as brigas com familiares por divergências ideológicas, as pesquisas ditando os assuntos mais comentados no Twitter, os grupos silenciados de WhatsApp, o recebimento de vídeos que só tiram a sua paciência e a memória do seu celular.
Até início de novembro, ninguém ficará imune ao convívio com a disputa. Duvido que você não perca uma amizade ou não seja cancelado por uma opinião dissonante.
Apesar do desgaste, existem ainda o contentamento de pertencer a um lugar, o suspense para descobrir se os seus candidatos serão eleitos. Alguns são conhecidos – sempre haverá um parente concorrendo –, outros são apenas admirados de longe pelas suas condutas. Todo mundo faz uma lista de números para levar de colinha para a urna, ainda mais quando a situação envolve a escolha de deputados e senadores.
Até início de novembro, ninguém ficará imune ao convívio com a disputa. Duvido que você não perca uma amizade ou não seja cancelado por uma opinião dissonante.
Votar é um gesto fascinante. Meus pais, de 83 anos, por exemplo, nunca abdicaram do direito e seguem comparecendo na cabine de papelão do TSE.
O título costuma ser o nosso elo perdido, nosso túnel do tempo, uma maneira de reencontrar a nossa origem, a nossa escola, rever o nosso bairro natal.
Jamais tive coragem de alterar o domicílio de meu título.
Em toda eleição, eu me condiciono a voltar para a infância. É um regresso para onde nasci, para onde me criei e fui educado. Sei de cor o caminho à seção, não preciso consultar o meu registro e pedir informações no guichê de entrada.
Trata-se do meu lugarzinho de estimação, meu refúgio atemporal, meu flashback do destino.
Não tem graça justificar o voto e se valer do abono do trânsito.
Votação é o meu pretexto para retornar ao ponto de partida de todos os pleitos de minha vida, desde 1989.
Encontrarei meus antigos professores, já envelhecidos, que nunca cansam de me dar generosos descontos de comportamento e dizer que eu era querido na sala de aula, que já adivinhavam que seria alguém no futuro. Professor será sempre o nosso primeiro profeta.
Vou me deparar com os colegas de classe do Ensino Fundamental – na verdade, eles que me localizam primeiro e me chamam por apelido que esqueci. Demoro a reconhecê-los. Procuro uma pinta, um trejeito, uma mania que ligue o GPS da memória. Repassaremos como estão os trinta e dois alunos da lista de chamada. Depois de esgotar o alfabeto e acabar o único assunto que nos vincula, ficaremos sem jeito com o silêncio e nos despediremos com um abraço adulto e desajeitado.
Ando de mãos dadas com a minha saudade, atravessando as ruas da minha ingenuidade com uma atenção especial, festejando as casas da minha época que resistem de pé e me assustando com os prédios altos em locais improváveis.
Armazeno observações para a conversa de café, leite e cacetinho no fim da tarde com a família. Falaremos sobre as transformações das fachadas e os novos vizinhos. No fim, tentarei decifrar em quem cada um votou, porém nem todos revelam, existirá um irmão ou um tio transformando a boca de urna em boca de siri, defendendo a natureza secreta da opção.
Vivo um tumulto interior ao revisitar as vias asfaltadas que antigamente soltavam terra vermelha, ao tentar atualizar o mapa da cidade hoje tão diferente. Certas pracinhas permanecem iguais, com a vegetação irregular no tanque de areia do escorregador. Certas placas azuis das esquinas perduram inclinadas.
A cada dois anos, frequento o mesmo colégio. Antes o trajeto se mostrava coberto de propaganda eleitoral, com santinhos cobrindo o chão, tal serpentinas em carnaval. Não existem mais a festa e a algaravia na porta do prédio, deve-se agora entrar e sair em silêncio. Resta a minha solidão de adolescente, intacta: a comoção de ser útil.