Já notou o quanto estamos obcecados pela saudade depois de experimentar o isolamento da pandemia?
Foram milhares de lutos, vidas trancadas, o medo e a ansiedade de nunca mais nos encontrarmos com os parentes e amigos.
Paramos para projetar o tanto que significa a nossa própria ausência e a daqueles que nos rodeiam.
É ela que nos leva a resistir em momentos de privação. Apesar dos suspiros, não é tristeza. É o que resta da alegria. É uma alegria doendo.
Você sente saudade porque já foi alegre – não é tão comum saudade do sofrimento.
A memória costuma pregar peças. A dificuldade de convivência potencializa a falta. Quanto maior o esforço para admitir uma mania ou uma imperfeição de alguém, maior a saudade.
Meus pais, com a graça de Deus, ultrapassaram os oitenta anos. Venho notando em mim o quanto comecei a gostar daquilo que me irritava antes neles.
Não sei se é identificação ou superação.
Talvez a saudade seja um esforço de amar, esforçamo-nos para aceitar o outro com o tempo, até que ficamos parecidos. A saudade nos torna parecidos com aqueles de quem sentimos saudade. Porque é um elo de ligação indestrutível. Você se espelha no outro como a melhor parte vivida de si.
Tanto que, quando um ente querido parte, não temos saudade dele, mas de tudo o que não mais seremos com ele. É saudade de nós.
Nossa saudade não é não visitá-lo mais, não beijá-lo mais, não abraçá-lo mais, mas não ser mais visitado, beijado, abraçado. Nós, vivos, é que morremos para o nosso morto. Ele está cada vez mais vivo dentro de nós, nós que não seremos mais lembrados por ele.
A memória costuma pregar peças. A dificuldade de convivência potencializa a falta. Quanto maior o esforço para admitir uma mania ou uma imperfeição de alguém, maior a saudade. Porque você aprendeu a respeitar as diferenças como conexão da intimidade. Tem a saudade como um mérito pessoal e intransferível: só você, mais ninguém, é capaz de suportar aquela chatice ou aquele incômodo, ou mesmo compreender certas decisões da pessoa.
Um exemplo disso são casais há décadas juntos, que vivem se vangloriando de aguentar o ronco, as compulsões, as reclamações, os atrasos, as distrações do seu parceiro. Os defeitos tolerados formam, no fim, um patrimônio da cumplicidade.
“Só eu para aguentar você” é um usucapião do “eu te amo”.
Nesse sentido, a saudade é provação. Você não tem nostalgia das virtudes, mas das dificuldades transpostas do relacionamento.
Eu lembro que me perturbava um hábito dos meus pais. Quando riscavam fósforos para acender o fogão (não era automático na minha infância), eles, em vez de pôr o palito usado no lixo, devolviam-no para a caixinha.
Sempre que eu precisava da chama, pescava um item usado. Experimentava uma loteria da paciência.
Jamais pegava um fósforo com a ponta vermelha intacta. Distraído, eu me enganava e friccionava inutilmente o palito com a ponta apagada. Enervavam-me os minutos perdidos em cada operação, obrigando-me a visualizar o que tinha dentro da caixinha para não errar de novo.
Hoje eu faço questão de botar todos os palitos empregados de volta na caixinha. Eu me tornei igual aos meus pais, azar dos meus filhos e da minha esposa.
Porque toda saudade será a lembrança do fogo. É o fogo que carregamos em nós.