A Rolls-Royce fabricou um carro com total isolamento dos ruídos externos e do motor.
Só que a reação não foi a esperada. Vários usuários reclamaram para a empresa de um mal-estar, de uma situação bizarra de desconforto quando conduziam o veículo. Parecia que ele andava sozinho, de modo automático.
Os engenheiros foram estudar o problema e perceberam que o problema era a ausência de problema. Os motoristas estavam sentindo falta de um barulho. De um barulhinho qualquer. Para ter a sensação de que o transporte era real, de que não estavam sendo teletransportados de um lugar para outro.
Sem qualquer referência sonora, acabavam desorientados. Perdiam a noção da velocidade e do espaço. Como se estivessem presos dentro de uma infinita estática. Numa experiência similar à de um passageiro em um trem-bala.
Não havia domínio humano ou determinação geográfica. Tal como transe, os destinos se embaralhavam.
Para solucionar o caso, os projetistas inventaram um som a partir do rebatimento das ondas sonoras do porta-malas, que ressoasse pelos bancos e pelas portas da cabine.
Consumimos cada vez mais produtos e aparelhos silenciosos e esquecemos o quanto o ruído é fundamental como pêndulo da nossa existência, da nossa memória, da nossa saudade.
O que seria da minha manhã sem o cacarejar da cafeteira quando termina a água? Ou do chiado da chaleira para o chimarrão? Ou das tentativas de faísca do fogão? Ou da mudança de rotação do chuveiro elétrico? Ou do clique da chave certa na porta?
Extraviaria os meus referenciais de lugar, de casa, de vida doméstica. Eu me atrasaria para os compromissos, eu esqueceria os aparelhos ligados na tomada, eu enlouqueceria numa dinâmica espartanamente quieta.
Talvez eu começasse a ouvir vozes imaginárias, sirenes imaginárias, apitos imaginários. Apenas pela necessidade da paz de um barulho familiar.
Somos condicionados a ter rotina e horários pelos ouvidos. A audição nos disciplina. Eu antecipo a chegada de minha esposa do trabalho pelos pneus na garagem quando ela dá a ré para estacionar. Isso que moramos no terceiro andar.
Visto a princípio como um defeito para a tecnologia, o barulho é uma virtude da convivência. Nunca nos percebemos isolados. Vem a representar um princípio de companhia.
Há uma ancestralidade de intimidade, eco das residências pelas quais passamos, que não pode ser apagada de uma hora para outra. Ainda mais para quem foi criado com uma geladeira roncando – ela também tinha estômago – e aprendeu a dirigir num fusca, com a impressão de que o motor ia no colo.
Abriria uma exceção apenas para o aspirador de pó e o secador de cabelos, realmente irritantes.