Eu acredito no sobrenatural. Mas só pode acreditar no sobrenatural quem é muito entregue aos vivos, quem exerce a naturalidade do cotidiano.
Eu não temo meus mortos. São lembranças boas visitando, é a nostalgia batendo em minha porta, descerrando as trancas do meu medo, recobrando algo importante que eu vinha esquecendo.
Nem os chamo de fantasmas. Aliás, fantasmas são pessoas que não foram amadas e voltam para pedir um pouquinho do afeto que não receberam.
Às vezes, eu percebo o perfume de capim-cidreira de minha avó. Em especial, quando desperto. Eu levanto suspirando pelo cheiro que invade o quarto. Na minha infância, quando eu finalmente dormia, depois de tanto relutar para deixar a luz acesa, ela tinha a mania de colocar a sua mão na minha testa. O pano úmido de sua mão, acalmando a febre de meus sonhos.
Não é fantasia, não é loucura. Eu sei que ela está ali. Não dependo de nenhuma confirmação ou testemunha. De nenhuma prova ou manifestação externa. O invisível se dá quando fechamos os olhos e nos concentramos em apenas sentir a vida.
Não preciso acordar e cutucar a minha esposa ao lado para descrever a presença de minha avó. Eu me basto com a certeza do olfato, eu me basto com a solidão de minha intuição. Você jamais se desliga da alma de alguém apenas porque o corpo da pessoa não está mais entre nós.
Da mesma forma, eu pressinto David Coimbra cochichando nos meus ouvidos:
— Está excessivamente místico para a sua estreia. Seja mais realista. Menos, poeta!
Eu rio da advertência. Nunca vou substituí-lo, apenas continuo refletindo a sua luz, a sua labareda que tanto nos aqueceu por aqui.
Ele será lembrado a cada coluna que digito, durante todos os dias da semana. E quero mesmo que seja evocado. Quero que me digam que sentem falta dele, que nunca vou ocupar o seu espaço. Ou talvez que nem mereça. Não ficarei ofendido. A saudade é linda.
Porque o lugar dele é eterno. Não vai desaparecer nem daqui a décadas. Esta última página será sempre dele, eu serei sempre o seu esforçado interino, disposto a honrar a sua memória, a lustrar as suas histórias.
Toda admiração envolve humildade. Somos grãos de areia perto das pedras da gratidão.
Recordo-me de uma conversa com ele por mensagens, quando tentava ser seu amigo. Tínhamos escrito sobre um tema em comum, e ele me chamou.
David: Estamos em sintonia hoje!
Eu: Bom dia! Mesma estação. Estação é melhor do que data. Estação é temperatura de dentro. Sou do tempo em que os cachorros não usavam coleira e morriam atropelados em frente de casa. Livres até para morrer.
David: Grande imagem!
Eu: Seu texto foi a escada e você ainda a segurou para mim.
David: Hahahahaha sensacional!
Eu: Sempre tive esta certeza: que bom que David mora longe e não somos amigos de conversas diárias, porque iríamos nos gostar demais e seria difícil depois aguentar a saudade.
David: Concordo totalmente!
Eu: Amizades são difíceis como amores, e sempre adiadas. Mas estamos aí para estragar os planos do destino mais uma vez.
David: Essa é a ideia!
Não cheguei a ser amigo de David. Fui seu colega. Acho que seremos amigos agora. A finitude não é um empecilho.
Agora vamos conversar exaustivamente sobre o que escrever, aceitarei os seus conselhos, discutiremos temas repetindo cafés e soprando a fumaça das palavras.
Seremos amigos do sobrenatural, do invisível aos olhos e essencial ao coração.