Um ano após a deriva do agrotóxico 2,4-D ter dizimado parreiras de uva e pomares de oliveiras e macieiras no Rio Grande do Sul, causando prejuízos ao redor de R$ 100 milhões, um novo modelo de aplicação está sendo testado nas lavouras gaúchas.
Em pleno período de uso do produto para o plantio da soja, pela primeira vez com regras estabelecidas pelo governo estadual após o caso ter ido parar no Ministério Público (MP), sentimento dos fruticultores oscila entre esperança de safra cheia e apreensão de quem acumula frustrações sucessivas.
Até quinta-feira (31), a Secretaria Estadual da Agricultura havia recebido 22 denúncias de suspeitas de deriva do produto em 10 municípios gaúchos. Um dos exemplos é o da produtora Eveline de Almeida Previtali, de Dom Pedrito, na Campanha. Ao chegar na propriedade junto com a reportagem no dia 24 de outubro, percebeu o problema nas folhas de parreiras e oliveiras.
Outro caso que deve engrossar o número de denúncias nesta safra ocorreu na Estância Guatambu, uma das principais vinícolas da região. Dos 20 hectares cultivados com uvas viníferas, 19 estão com sinais de contaminação do herbicida hormonal.
— Neste ano, teve o agravamento do tempo ser muito ventoso. E a situação tende a piorar, já que a aplicação atrasou em razão da chuva — afirma Valter José Pötter, proprietário da Guatambu.
Nas situações com indicativos de que o herbicida saiu fora do alvo e se dissipou para cultivos vizinhos, técnicos agropecuários fizeram coletas das plantas e as encaminharam para análise laboratorial — ainda sem resultado. Mas alguns pedidos de apuração foram desconsiderados após verificação in loco pelos técnicos da secretaria.
— O canal de denúncia está aberto, mas é preciso ter parcimônia para usá-lo somente quando a suspeita for concreta — pondera Rafael Friedrich de Lima, chefe da Divisão de Insumos e Serviços Agropecuários da Secretaria da Agricultura.
A ansiedade dos produtores de frutas em acionar a fiscalização diante de qualquer suspeita é justificada pelo histórico de safras passadas. Em 2018, das 81 análises laboratoriais feitas em 24 municípios gaúchos, 69 deram resultado positivo para contaminação do herbicida 2,4-D em cultivos de uvas, azeitonas e maçãs nas regiões de Campanha, Fronteira Oeste, Central e Campos de Cima da Serra. Após meses de negociação, foram estabelecidas regras para uso do produto — inicialmente nos municípios onde ocorreram problemas. Entre as exigências, está a obrigatoriedade de cadastro dos aplicadores. Até agora, 951 pessoas foram registradas para usar o produto após participarem de curso de capacitação.
— Conseguimos colocar o assunto 2,4-D na agenda ambiental do Estado, envolvendo produtores, aplicadores, revendas e indústrias. O número de denúncias até agora indica que as medidas deverão reduzir sensivelmente os prejuízos — avalia Alexandre Saltz, promotor de Justiça responsável por inquérito aberto para apurar o caso.
Conseguimos colocar o assunto 2,4-D na agenda ambiental do Estado, envolvendo produtores, aplicadores, revendas e indústrias. O número de denúncias até agora indica que as medidas deverão reduzir sensivelmente os prejuízos.
ALEXANDRE SALTZ
Promotor de Justiça responsável por inquérito aberto para apurar o caso
Desde que as regras passaram a vigorar, em julho deste ano, o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar-RS) ofereceu 67 treinamentos — abrangendo 731 aplicadores nos 24 municípios onde o cadastro passou a ser exigido.
— Até o final do ano, a meta é chegar a mil pessoas capacitadas nessas cidades — projeta Alexandre Prado, coordenador de programas especiais do Senar-RS.
Prado lembra que, para fins de cadastro de aplicação, são aceitos treinamentos feitos nos últimos cinco anos — os quais somam 4.140 produtores em todo o Rio Grande do Sul. Passado esse período, é necessário renovar a formação oferecida de forma gratuita pelo Senar-RS, Emater, cooperativas, universidades e as próprias indústrias químicas.
Regulagem de equipamentos e questões climáticas
A Corteva, uma das principais fabricantes do produto, capacitou neste ano mil produtores de 15 municípios considerados críticos. Na formação teórica e prática, de 16 horas, os aplicadores aprendem como regular bicos de pulverizadores, calibrar equipamentos e respeitar condições climáticas no momento da aplicação — velocidade do vento, temperatura e umidade relativa do ar. Participante de treinamentos de tecnologia de aplicação em anos anteriores, o produtor de soja Custódio Magalhães fez questão de realizar o curso novamente — junto com um funcionário da propriedade.
— Meu objetivo é colocar o produto na minha lavoura e não causar prejuízo a nenhum vizinho — garante Magalhães, que cultiva mil hectares de soja em Bagé, na Campanha.
Lindeiro de propriedades que cultivam uvas e olivais, o agricultor garante sempre ter tido muito cuidado para reduzir risco de deriva. No pulverizador, comprado há três anos, instalou sistema eletrostático — que provoca efeito de imã na gota em direção ao solo — reduzindo o risco de dispersão do produto. No ano passado, Magalhães começou a usar também um termo higro anemômetro — equipamento que consegue medir em tempo real as condições de vento, umidade e temperatura.
— Tivemos vários dias sem condições de aplicação no mês de outubro, o que atrasou o trabalho. Mesmo assim, não pensamos duas vezes e deixamos o pulverizador parado — conta o produtor.
Indícios de problema na uva pelo quarto ano seguido
Na esperança de que as regras pudessem dar fim ao drama que se arrasta há pelo menos três safras na Campanha, uma das principais regiões produtoras de uvas finas e azeitonas do país, Eveline de Almeida Previtali levou um balde de água fria quando chegou na propriedade em Dom Pedrito.
— Não acredito que vou passar por isso pelo quarto ano seguido — lamentou a produtora rural, minutos após identificar folhas de parreiras e oliveiras retorcidas.
O enrugamento das plantas é o primeiro sinal de deriva de herbicida hormonal, que afeta o desenvolvimento vegetal — impedindo a continuidade do ciclo que originaria as frutas. Segundo relato de funcionários, um vizinho produtor de soja havia dessecado a lavoura dias antes. A suspeita levou Eveline a acionar a Secretaria da Agricultura no mesmo dia:
— Estou cansada, mas preciso continuar lutando para garantir o direito de produzir o que quiser dentro da minha porteira — diz a produtora que, ao lado do marido, André Previtali, cultiva 30 hectares de olivais e 12 hectares de uvas.
Não acredito que vou passar por isso (deriva) pelo quarto ano seguido.
EVELINE DE ALMEIDA PREVITALI
Produtora de uvas e oliveiras
Com cerca de 1,5 mil hectares de viníferas cultivadas, com destaque para cabernet sauvignon, merlot e chardonnay, a Campanha sofre com a redução da produtividade dos parreirais nos últimos anos. Em 2018, entre as 18 vinícolas da região, pelo menos 13 tiveram perdas relacionadas à deriva. Presidente da Associação dos Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha, Clori Giordani Peruzzo espera que os problemas diminuam com as regras.
— A soja e a fruticultura podem conviver, desde que as pessoas saibam respeitar o limite um do outro. E se alguém fizer algo errado agora, não pode dizer que foi por falta de aviso — afirma Clori.
Se as medidas não surtirem o efeito de reduzir drasticamente a deriva, o único caminho a ser discutido é a proibição do uso do produto no Estado, afirma o promotor de Justiça Alexandre Saltz:
— É importante que os produtores de soja tenham isso em mente. O descumprimento das regras poderá ter como consequência a retirada do produto do mercado.
Saltz alerta pela responsabilidade criminal (dois a quatro anos de reclusão, além de multa) e de reparação dos danos causados — agora mais fáceis de comprovação em caso de desrespeito às normas:
— A repressão também faz parte da educação. Quem desafiar o Estado será processado —reforça o promotor.
Pomares de macieiras e oliveiras têm menos problemas, por ora
Prejudicados pela deriva do herbicida 2,4-D na safra passada, pomares de macieiras ainda não tiveram denúncia oficial de suspeita de contaminação nesta safra. Segundo o presidente da Associação Gaúcha de Produtores de Maçã (Agapomi-RS), José Sozo, ainda é cedo para ter uma percepção de eventuais problemas:
— Nas macieiras, o período de florada está quase no fim e não constamos danos, por ora.
Mas, como o período de aplicação dos dessecantes das áreas de soja ainda não terminou, alerta o dirigente, ainda há risco de problema. No ano passado, sete pomares tiveram perdas médias de 48% cada.
— Em meados de novembro, quando as macieiras estiverem mais desenvolvidas, teremos uma análise mais apurada — explica o dirigente da Agapomi.
Nos pomares de azeitonas, segundo o Instituto Brasileiro de Olivicultura (Ibraoliva), a situação também parece estar mais tranquila em relação ao ano passado — quando produtores chegaram a abandonar a atividade por problemas recorrentes de má aplicação do herbicida.
— Até agora, tivemos um produtor de Cachoeira do Sul que constatou sintomas visuais de deriva nas árvores. Coletas foram encaminhadas para laboratório — informa Fabrício Carlotto, diretor-técnico da entidade.
Presidente da Associação dos Produtores de Soja do Estado (Aprosoja-RS), Luis Fernando Fucks garante que os agricultores estão cada vez mais cuidadosos em relação à aplicação de agroquímicos nas lavouras:
— Estamos em um período de adaptação, quando ainda poderão ocorrer falhas localizadas. Mas o mais importante é a mudança de comportamento, com a consciência de responsabilidade e aumento da qualificação.
Entenda as regras para aplicação
O governo do Estado publicou instruções normativas para regrar o uso de agrotóxicos hormonais, como o 2,4-D, nas lavouras do Rio Grande do Sul. Nesta safra, a vigência é para os 24 municípios onde foram confirmados casos de deriva no ano passado. A partir de 2020, as exigências valerão para todo o Estado. Entenda as mudanças:
- O produtor rural e/ou aplicador devem assinar termo de conhecimento de risco e de responsabilidade para uso do produto.
- O aplicador de herbicidas hormonais deve fazer um curso específico de, no mínimo, 16 horas, para ser autorizado a usar os produtos.
- O treinamento é exigido para o cadastro de aplicadores feito na Secretaria Estadual da Agricultura — que até agora soma 951 pessoas em 24 municípios.
- Após a utilização do agrotóxico, o produtor rural deve fazer o registro de aplicação e declarar à Secretaria da Agricultura.
- A venda de agrotóxicos hormonais deve ser orientada, ou seja, as revendas também poderão ser responsabilizadas pelo uso incorreto do produto.
Denúncias de deriva
Até a última quinta-feira (31), a Secretaria Estadual da Agricultura havia recebido 22 denúncias de deriva nos municípios de Viadutos, Piratini, Santa Maria, Ibiaçá, Dom Pedrito, Maçambará, Cachoeira do Sul, Encruzilhada do Sul, Itaqui e Jari.
Nas propriedades foram feitas coletas em plantas de uva, azeitona, noz pecã e hortaliças. Os vegetais suspostamente afetados foram encaminhados ao Laboratório de Análises de Resíduos e Pesticidas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Em alguns casos, não havia indicativos de deriva.
O produtor que suspeitar de deriva de agrotóxico deve comunicar a Secretaria da Agricultura pelo telefone (51) 3288-6296, WhatsApp (51) 98412-9961 ou e-mail denunciahormonais@agricultura.rs.gov.br. No site agricultura.rs.gov.br, banner Denúncias 2,4-D, é possível conferir as informações que devem constar na queixa.
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