Primeira providência para a produção de alimentos, a correção da acidez do solo tem na sua base um insumo 100% nacional: o calcário. No Rio Grande do Sul, 85% do volume utilizado em lavouras é extraído de minas naturais de rochas em Caçapava do Sul, na região da Campanha. Apesar de velho conhecido da agricultura e barato na comparação com outros, o produto ainda é negligenciado por parte dos agricultores — que erram a mão na hora da aplicação, com equívocos que vão de quantidades insuficientes a superdoses desnecessárias. O descuido na largada deixa rastros de prejuízos, com perdas na fertilidade e, consequentemente, na produtividade da safra.
— Quando se usam nutrientes em solos ácidos, mal corrigidos, as plantas não conseguem absorver substâncias essenciais para a produção, comprometendo todo o desenvolvimento de um ciclo agrícola — explica José Eloir Denardin, pesquisador da Embrapa Trigo, de Passo Fundo.
A necessidade de neutralizar o PH elevado foi preconizada no Estado pela histórica Operação Tatu, iniciada no município de Ibirubá, no Noroeste, ainda nos anos 1960. Na época, em esforço conjunto de instituições como Emater e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um programa estadual estimulou o melhoramento da fertilidade por meio da correção de solos ácidos, especialmente os da Metade Norte, mais argilosos.
O resultado foi uma revolução na agricultura gaúcha nas décadas seguintes.
— O PH é uma variável-mestre, por isso uma calagem (correção com calcário) benfeita é tão importante para o sucesso da adubação da terra — reforça Amanda Posselt Martins, professora da Faculdade de Agronomia da UFRGS.
No ano passado, o consumo do insumo agrícola no Estado chegou a 3,2 milhões de toneladas. Segundo o Sindicato da Indústria de Calcário no Rio Grande do Sul (Sindicalc), há espaço para pelo menos dobrar esse volume, chegando a mais de 6 milhões de toneladas por ano.
— Apesar do avanço de pesquisas científicas recentes, por meio de universidades, ainda há falta de informação sobre a real necessidade de calcário — avalia Roberto Zamberlan, presidente do Sindicalc.
Caçapava do sul concentra oito unidades de produção
Das 13 unidades de produção de calcário no Estado, quarto maior produtor nacional do insumo, oito estão localizadas em Caçapava do Sul. A concentração é explicada pela localização das jazidas minerais no município, com idades entre 300 milhões a 500 milhões de anos. Uma das empresas mais antigas é a Dagoberto Barcellos (DB), fundada há mais de cem anos. Com três minas de extração de rochas, a indústria tem investido nos últimos anos para aumentar a qualidade do calcário — por meio do poder de neutralização e granulometria (tamanho de partículas).
Quando se usam nutrientes em solos ácidos, mal corrigidos, as plantas não conseguem absorver substâncias essenciais para a produção, comprometendo todo o desenvolvimento e um ciclo.
JOSÉ ELOIR DENARDIN
Pesquisador da Embrapa Trigo
— Quanto mais fino for o calcário, uma tendência de mercado, mais imediata será sua ação no solo. A agricultura quer agilidade, e é o que buscamos constantemente — destaca Dagoberto Fontoura de Barcellos Neto, diretor administrativo-financeiro da DB, que investe também na seleção das rochas a serem beneficiadas.
Com o crescimento do mercado agrícola nos últimos anos, e o declínio da construção civil no país, a empresa Fida, também localizada em Caçapava do Sul, viu o agronegócio alcançar 65% de participação no seu faturamento. Os resultados estimularam a indústria a apostar em linhas de fertilizantes à base do mineral, agregando nutrientes primários e secundários na composição do produto.
— Altas produtividades exigem complementos de adubação. Além disso, seguindo a tendência da produção orgânica, passamos a oferecer produtos à base de rochas naturais, finamente moídas, sem nenhum elemento químico — explica Irani Tadeu Cioccari, um dos diretores da Fida, fundada na década de 1950.
Com programas estaduais de correção da acidez do solo criados no passado, um no final da década de 1990 e outro em 2012, o governo gaúcho estuda a possibilidade de propor nova iniciativa.
— Estamos avaliando qual o melhor formato do programa, até para não repetir erros do passado, quando as ações acabaram sendo descontinuadas — afirma Ivan Bonetti, diretor de Política Agrícola e Desenvolvimento Rural da Secretaria da Agricultura.
Bonetti destaca que o programa não pode se restringir à distribuição do insumo aos produtores, por meio das prefeituras. Segundo ele, é preciso também oferecer assistência técnica:
— Um grupo de trabalho já está se reunindo para propor nova versão. A intenção é lançar o programa ainda neste ano.
Forma de utilização divide opiniões de especialistas
Apesar da unanimidade técnica em torno da importância de neutralizar o PH do solo, na prática a aplicação de calcário ainda divide opiniões entre especialistas. Pesquisador da Embrapa Trigo, José Eloir Denardin vê problemas na forma como a correção é feita em muitas lavouras gaúchas. Na sua opinião, a calagem em superfície (com o produto lançado em cima da terra) é eficiente somente em sistemas plantio direto que gerem mais de oito toneladas de resíduos por ano. E, para alcançar esse volume, explica o especialista é necessário fazer rotação de culturas que incluam no modelo de produção gramíneas de verão — como milho, milheto, capim sudão, sorgo e braquiara.
— Infelizmente, essas práticas estão cada vez mais raras no Estado — lamenta Denardin.
Se a frequência de aplicação está aumentando, é sinal de que os solos estão sendo degradados.
JOSÉ ELOIR DENARDIN
Pesquisador da Embrapa Trigo
Quando o calcário é utilizado em áreas que produzem quantidade de resíduos inferior a oito toneladas por ano, normalmente com poros entupidos por argila, o produto não consegue penetrar — sendo levado para fora da lavoura na primeira enxurrada, detalha o pesquisador. Nesses casos, segundo ele, a alternativa mais eficaz é incorporar camadas profundas de calcário, de zero a 40 centímetros, em períodos médios de cinco anos — com necessário revolvimento da terra.
— Se a frequência de aplicação está aumentando, é sinal de que os solos estão sendo degradados. Se os produtores estivessem aumentando a quantidade de matéria orgânica na terra, a necessidade de correção certamente estaria caindo — resume Denardin.
Professor do Departamento de Solos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Telmo Amado concorda com a necessidade de reduzir o PH em camadas mais profundas do solo, mas discorda de que isso não seja possível quando o produto é aplicado em superfície.
— Há alternativas para permitir que o produto seja absorvido sem o revolvimento da terra: como a maior frequência da calagem, a cada dois ou três anos, e a associação com plantas de cobertura no inverno, como aveia, ervilhaca e nabo forrageiro — afirma Amado, acrescentando que o uso de gesso é opção para ajudar no preparo da terra sem a necessidade de arar.
Avaliação a partir de critérios técnicos
Somente em casos extremamente críticos de acidez, o pesquisador da UFSM recomenda a escarificação (revolvimento leve do solo).
— Muitos produtores campeões em produtividade conseguem que as plantas atinjam raízes profundas com aplicação em superfície — afirma o professor.
Independentemente da forma de aplicação escolhida pelo produtor, a professora da UFRGS Amanda Posselt Martins alerta que a decisão precisa ser baseada em critérios técnicos:
— Em muitas lavouras se criou uma receita pronta, o que não existe. Somente a análise do solo por talhões dará respostas precisas — afirma Amanda.
Calagem ameniza perda em anos de estiagem
Além de garantir que o solo absorva nutrientes como nitrogênio, fósforo e potássio durante a adubação, uma boa calagem oferece maior resistência às plantas em períodos de estiagem.
— Quando perde-se a eficiência na fertilização mineral, a lavoura fica mais suscetível a déficits hídricos — indica o professor da UFSM Telmo Amado, acrescentando que em anos de falta de chuva o potencial produtivo de lavouras de soja pode sofrer redução de 10% a 20%.
O PH é uma variável-mestre, por isso uma calagem (correção com calcário) benfeita é tão importante para o sucesso da adubação da terra.
AMANDA POSSELT MARTINS
Professora da UFRGS
Pesquisador da CCGL e professor da Universidade de Cruz Alta (Unicruz), Jackson Fiorin alerta que altas produtividades em anos de tempo favorável não são sinônimo de correção adequada da acidez do solo.
— Muitas vezes o produtor colhe 70 sacas por hectare e acha que está tudo bem. Mas, quando falta chuva, vê a produção despencar — explica.
Um dos desafios para aumentar a conscientização em relação aos cuidados no manejo, acrescenta Fiorin, é encurtar os longos períodos de solo descoberto no inverno e também sensibilizar produtores arrendatários sobre a questão.
— Quando a terra não é própria, os investimentos para conservação do solo são menores, e isso é um entrave para o aumento da produtividade — resume o professor da Unicruz.