Fortemente identificado com o setor rural, o presidente Jair Bolsonaro começou seu mandato mexendo em temas sensíveis ao agronegócio, como identificação, delimitação, demarcação e registro de territórios indígenas – competências que passaram a ser do Ministério da Agricultura e não mais da Fundação Nacional do Índio (Funai). O próprio órgão indigenista deixou a pasta da Justiça no início do mês para ser incorporado à dos Direitos Humanos. Com 19 territórios em estudo pelo governo para possível demarcação, o maior número entre todos os Estados, o Rio Grande do Sul será afetado pelo cenário de mudanças.
Segundo a Funai, essas áreas são tradicionalmente ocupadas por caingangues ou guaranis e distribuídas por 23 municípios. Bolsonaro já declarou que, se depender dele, "não tem mais demarcação", posicionamento apoiado pela Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul). Para a entidade, a população indígena tem "terras suficientes" para seu desenvolvimento econômico e social e avalia como "naturais" as alterações feitas por decreto.
— Independentemente a qual ministério esteja vinculada, o importante é que a Funai perca seu viés ideológico e político. Isso vinha causando enorme tensão nessas áreas — sublinha o presidente da comissão de Assuntos Fundiários da Farsul, Paulo Ricardo Dias.
Já a direção da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) contesta a mudança por avaliar que o governo acata "reivindicação da classe ruralista" e coloca os "interesses privados acima dos coletivos".
— Envio dos processos administrativos de demarcação para o Ministério da Agricultura atende a interesses contrários aos direitos dos povos indígenas — sustenta a coordenadora-executiva da organização, Sônia Guajajara.
A população indígena que mora em áreas próprias no Brasil soma 517.383 pessoas. Dessas, 18.266 (3,53%) estão no Rio Grande do Sul, Estado com 29 áreas demarcadas em 41 municípios e ocupadas por caingangues, guaranis e guaranis mbya. Na avaliação de Dias, também vice-presidente da comissão de Assuntos Fundiários da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a demarcação das 19 áreas ainda em estudo levaria a mais conflitos, principalmente no raio de aproximadamente 150 quilômetros ao redor de Passo Fundo, onde encontram-se inúmeras reservas, como a do Carreteiro, em Água Santa.
— Esperamos que, com a nova orientação do governo, essas áreas em estudo não sejam demarcadas. Causaria mais tensão. Além de novos territórios, os índios buscam ampliar as que já são suas — complementa Dias.
O território Carreteiro, demarcado em 1911, é uma reserva distante dois quilômetros do centro do município. Os moradores da aldeia, de origem caingangue e vizinha de lavoura de soja, reivindicam expansão da área, hoje de 602,98 hectares. A população da reserva era de 245 indígenas em 2010, conforme dados mais atualizados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atualmente, há 17 processos em tramitação na Justiça envolvendo disputa de terras com índios no RS, conforme a Advocacia-Geral da União (AGU).
Procuradoria-Geral da República é acionada
Tão logo o presidente Bolsonaro anunciou a retirada da demarcação de terras indígenas da Funai, em 1º de janeiro, a Apib protocolou representação pedindo que a Procuradoria-Geral da República ingresse com ação judicial para devolver ao órgão a atribuição de identificar essas áreas.
A organização que representa os índios solicitou, ainda, a instauração de inquérito civil para investigar e monitorar os atos e processos administrativos de demarcação que irão tramitar na pasta. Para a coordenadora-executiva da Apib, o presidente deixou claro, com as alterações, que seu compromisso é "com o que há de mais atrasado no Brasil":
— Essas ações e as falas de Bolsonaro geram vulnerabilidade e dão respaldo para a intolerância indígena — pontua Sônia.
A Funai não quis se manifestar e o Ministério da Agricultura informou que criará um conselho "para que as demarcações sejam feitas através dele".
No radar do presidente, estão também outras pautas de interesse do setor agropecuário, como reforma agrária, anistia de produtores em débito com o Funrural e flexibilização da posse de arma, anunciada na quarta-feira (16).