Por Tau Golin e Antonio Carlos Rodrigues
Jornalista, historiador, professor e velejador / Professor e coordenador do “Projeto Seival e os Caminhos de Garibaldi”
O projeto de revitalização-construção da hidrovia Brasil-Uruguai aflorou diversos temas, pois cada ação carrega seu paradoxo, sua imanência negativa conforme concepções divergentes concomitantes aos argumentos positivos. Na perspectiva econômica, seus futuros indicadores de comércio e movimentação financeira são obviedades. Os canais artificiais a serem dragados e/ou abertos vão possibilitar o descortinar de um mundo visualmente paradisíaco como o da Lagoa Mirim, seus rios e arroios. Ao lado das barcaças e navios de transporte que começarão a singrá-la, as embarcações de recreio transitarão suas águas em uma espacialidade edílica. Serão mais veleiros, lanchas e a maldição abominável da poluente moto aquática – o jet-ski.
Entretanto, equivocam-se aqueles que consideram águas intocáveis pela presença humana e suas máquinas como lugares paradisíacos em si. Invariavelmente, lugares sem presença humana transformam-se em cloacas, depositórios de poluentes. Em algumas regiões, sem grupos humanos dentro d’água, banhando-se, a contundência da defesa do meio ambiente é acéfala. Estuários como o Guaíba são celebrados em fotografias e vídeos – como é belo o nosso pôr do sol! Trata-se de vivências imagéticas, sem a radicalidade necessária que instiga a sobrevivência humana. Apenas os movimentos ambientalistas percebem o tamanho da desgraça.
A Lagoa Mirim já teve seus paladinos. Talvez os mais expressivos sejam Décio Vaz Emygdio, a comunidade do Iate Clube Jaguarão, os abnegados da Agência da Lagoa Mirim sediada na UFPel e muitos outros. Foi o Décio, engenheiro-agrônomo e velejador, que em seu livro Lagoa Mirim, um Paraíso Ecológico (1997) demonstrou a complementaridade ecológica da Mirim e do Taim na planície costeira, demonstrou os perigos representados por obras nos seus afluentes anunciadas há mais de 30 anos e algumas infelizmente construídas pela engenharia da destruição. Formado em Agronomia, diagnosticou a maldição dos herbicidas, aplicados sem controle, e técnicas de respeito ao meio ambiente.
Mesmo com baixa presença humana e de embarcação de grande calado, a Lagoa Mirim vem sendo agravada em seus níveis poluentes, servindo exclusivamente de depositório de água para os arrozeiros, cloaca de esgotos e principalmente de pesticidas, com a inclusão de venenos proibidos em muitos países. Se nada for feito, sem a presença humana para sentir na pele a contaminação já existente, a sua débil saúde ambiental só vai se agravar.
Esse é o paradoxo em que navega a Expedição Seival. Seu convés deseja retomar a história da navegação, contar os usos das classes de barcos, preservar as técnicas de construção, fortalecer uma memória humana das águas, atualmente apagada, apesar de subsistirem inúmeras comunidades costeiras, marceneiros navais e suas complexas técnicas de construção, advindas de tempos longínquos, com adaptações locais. Com a hidrovia, terminou a brincadeira. A crítica purista de elogio do “intocável”, que há muito tempo não existe concretamente, é uma espécie de conivência. Agora trata-se de fazer navegar realmente as leis do meio ambiente na Lagoa Mirim e criar dispositivos legais para minimizar os danos. Sem gente dentro da água, atestando a balneabilidade na pele, a lagoa continuará desprotegida e se agravará a sua contaminação.
É preciso considerar que, quando se fala em Lagoa Mirim, estamos nos referindo a uma área média de superfície de 62.250 quilômetros quadrados, com 20km de largura por 190km de comprimento. Conectada com a Laguna dos Patos pelo canal do São Gonçalo, de 76km de comprimento, forma o maior complexo lagunar da América do Sul. Acrescentem-se ainda afluentes extraordinários de arroios e rios. São inúmeras as razões para que a hidrovia também leve em seu paradoxo para dentro da Lagoa Mirim as instituições de preservação com tolerância zero aos poluidores. Não estamos apenas diante de um caso em que se pode aumentar os danos ao meio ambiente, mas também de corrigir a histórica e progressiva contaminação que vem ocorrendo há anos. Se isso for negligenciado, na perspectiva ecológica, a hidrovia, apesar de necessária economicamente, será mais uma desgraça.
Essa é a rota paradoxal que a Expedição Seival está singrando pelas águas da futura Hidrovia Brasil-Uruguai e anunciando desde a sua gávea de futuro.