A cada cem litros de água potável tratada após captação em rios e mananciais no Rio Grande do Sul, 41,6 se perdem em vazamentos e nem chegam às torneiras de residências, comércios e indústrias. A análise é de estudo divulgado na segunda-feira (5) pelo Instituto Trata Brasil, organização de São Paulo dedicada ao debate sobre saneamento básico.
O desperdício diário em solo gaúcho, equivalente a 535 piscinas olímpicas, seria o suficiente para abastecer as residências de 2,15 milhões de gaúchos. A potencial população atendida com a quantidade perdida no meio do caminho supera o necessário para 1,49 milhão de moradores do Rio Grande do Sul sem acesso à água encanada.
As perdas em território gaúcho são piores do que a média brasileira e do que em Estados como Santa Catarina, Paraná, Bahia e Tocantins.
O pior cenário é no Amapá, onde quase 75 litros são desperdiçados entre cem captados, como mostra o gráfico a seguir:
A ineficiência do sistema ocorre devido a defeitos nos canos que atravessam cidades – tanto em hidrantes que jorram água nas ruas quanto em tubulações vazadas e escondidas debaixo do asfalto –, assim como em erros de medição ou no consumo não autorizado de água.
Segundo especialistas, as principais causas de vazamento são o uso de encanamentos velhos, com materiais antigos, e a falta de manutenção por parte das concessionárias responsáveis por gerir a distribuição de água nas cidades brasileiras.
— Sem investimento, não há obras para fazer as correções necessárias, então as perdas aumentam. Com a pujança da economia do Estado, deveria haver indicadores melhores em saneamento básico — afirma a presidente-executiva do Trata Brasil, Luana Pretto.
O grande volume de perda traz dano ambiental, uma vez que uma imensa quantidade de água é jogada fora antes de chegar ao destino final, e também prejuízo financeiro: desperdiçar água potável e tratada significa jogar dinheiro fora, visto que concessionárias ou poder público investiram para captar o líquido da natureza e tratá-lo com processos químicos e físicos a fim de bombeá-lo pelas cidades.
O Rio Grande do Sul não está numa posição boa. Um índice de 41,6% de perdas de água tratada é alto. Além disso, o Estado é um dos piores em tratamento de esgoto.
ANTÔNIO BENETTI
Engenheiro e professor da UFRGS
O alto desperdício em um dos Estados mais ricos da nação contrasta com a falta de água sofrida por gaúchos ano a ano – em 2023, 390 dos 497 municípios do Rio Grande do Sul (78% do total) decretaram situação de emergência devido à estiagem.
— Temos gente sem água potável, mas estamos desperdiçando. Esse desperdício saciaria muita gente. E, se houvesse menor perda, teríamos condições de suprir necessidades em períodos críticos sem água. Provavelmente, (uma cidade) não deixaria de entrar em situação de emergência, mas se poderia minimizar o impacto da estiagem — avalia Claudio Frankenberg, professor de Engenharia Química na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e especialista em engenharia de recursos hídricos.
O Instituto Trata Brasil analisou dados públicos de 2021 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). As estatísticas ainda mostram que 13,1% da população gaúcha não tem água encanada em casa e quase 66% não tem esgoto coletado.
— O Rio Grande do Sul não está numa posição boa. Um índice de 41,6% de perdas de água tratada é alto. Além disso, o Estado é um dos piores em tratamento de esgoto. Precisa haver mais investimentos em coleta e tratamento de esgoto e na melhora de gestão de abastecimento de água. Tudo está interligado: sem tratamento, o esgoto vai pros rios, a água é captada para ser tratada, mas daí tem perdas nos sistemas de abastecimento. Temos um longo caminho pela frente que depende de melhorias na gestão e em investimentos — diz Antônio Benetti, engenheiro e professor do Núcleo de Estudos de Saneamento Ambiental do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em nota enviada a GZH, a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), responsável pelo saneamento básico de 317 dos 497 municípios gaúchos, afirma que as perdas em água da companhia são de 43% (acima dos 41% apontados no estudo do Instituto Trata Brasil).
Temos gente sem água potável, mas estamos desperdiçando. Esse desperdício saciaria muita gente.
CLAUDIO FRANKENBERG
Professor de Engenharia Química na PUCRS
O novo Marco Legal do Saneamento Básico, de 2020, estipulou que, até 2033, 99% dos brasileiros devem ter acesso à água tratada e que o desperdício do sistema deve cair para 25%. O órgão diz que o índice de perdas de 43% está “em linha com a média nacional, ainda que haja dúvidas sobre a exatidão desses números em relação a várias regiões do Brasil”.
A Corsan destaca que, entre 2019 e 2022, elevou os investimentos de R$ 332 milhões para R$ 643 milhões, mas que precisa de R$ 1 bilhão para universalizar o atendimento – motivo pelo qual o governo do Estado decidiu privatizar a companhia (leia a nota completa ao fim da reportagem).
Cenário do Brasil
O estudo do Instituto Trata Brasil mostra que, a nível nacional, o Brasil está distante de países ricos e em desenvolvimento, como China, México, Rússia e África do Sul. O desperdício de água piorou dois pontos percentuais em cinco anos e alcançou uma perda de 40,3% no caminho de distribuição – sinal de que concessionárias não investiram em atualizar encanamentos.
No país, a quantidade de água perdida no meio de caminho devido a vazamentos seria suficiente para abastecer os 17,9 milhões de brasileiros que vivem nas favelas brasileiras por um ano e meio. Hoje, 33 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada.
— Além de perdermos água que teve um custo para tratamento, diminui-se a quantidade que chega na casa do cidadão. Muitas vezes, há reclamação de falta de água, e isso ocorre também por vazamentos. Apesar de estarmos em um país com muita água, a gente tem vivido mudanças climáticas que têm alterado nosso regime de chuvas — resume Luana Pretto, presidente-executiva do Instituto Trata Brasil.
Capital gaúcha tem menos perdas
Em Porto Alegre, 33,2% da água tratada é desperdiçada, o sétimo menor índice entre todas as capitais brasileiras, segundo dados de 2021. Conforme o Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae), dados mais atualizados, do ano passado, indicam que a perda caiu para 27% de toda a água captada.
Entre as cem maiores cidades do Brasil, Porto Alegre é a 49ª em desperdício de água – perdeu seis posições desde o ano passado.
— Para as regiões Sul e Sudeste, é um índice razoável, estamos na média. Para avançar a uma meta de, no máximo, 25% de desperdício, precisa evoluir muito em investimento de novas canalizações e de controle operacional de área, porque há sistemas automatizados de controle — diz o diretor-adjunto do Dmae, Darcy Nunes dos Santos.
Quantidade considerável dos canos da capital gaúcha precisa ser trocada, em obras que costumam influenciar o trânsito. Dos 4 mil quilômetros de encanamentos de água de Porto Alegre, 750 quilômetros estão antigos e precisam ser substituídos – a cada ano, a autarquia municipal renova, em média, 35 quilômetros.
Atualmente, uma das obras de renovação de encanamentos é realizada na Rua Andradas, entre a Marechal Floriano Peixoto e a Dr. Flores, no Centro Histórico, onde GZH esteve na quarta-feira (7).
Para além de afetar o trânsito na região de obras, cada quilômetro renovado custa cerca de R$ 350 mil. Na prática, para renovar os encanamentos antigos da capital gaúcha, o Dmae precisaria desembolsar, pelo menos, R$ 262,5 milhões, cerca de um quarto do orçamento anual da instituição.
Como está o RS
- 1,49 milhão de pessoas (13,1% da população gaúcha) não têm acesso à água
- 7,5 milhões de pessoas (65,9% da população gaúcha) não têm esgoto coletado
- Do esgoto coletado, 25,3% não é tratado e volta para a natureza
Como está Porto Alegre
- 0% da população não tem acesso à água
- 8,4% da população não tem esgoto coletado
- Do esgoto coletado, 52,7% não é tratado e volta para a natureza
Fonte: Instituto Trata Brasil, feito com base em dados públicos de 2021 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS)
Indústria de celulose reduz desperdício de água
Ainda que seja importante prestar atenção ao desperdício de água em casa, o maior uso é em indústrias e no agronegócio, observam especialistas. Em um cenário no qual a pauta ambiental cada vez ganha mais força, ambos os setores passam a implementar práticas mais sustentáveis.
Como parte de sua agenda verde, a indústria de celulose CMPC, que fabrica produtos como papel higiênico, papel-toalha e filtro de café, implementa uma série de práticas para reduzir uso e desperdício de água. Entre quatro metas de sustentabilidade anunciadas em 2020, uma busca reduzir em 25% o uso de água em todas as instalações até 2025.
Muitas empresas estão vendo a necessidade de atuar proativamente para não ter regulamentação mais dura em virtude de climas extremos
MAURÍCIO HARGER
Diretor-geral da CMPC Brasil
No viveiro de 10,5 milhões de mudas de eucalipto espalhadas em um terreno equivalente a 17 campos de futebol em Barra do Ribeiro, a indústria instalou sensores para detectar vazamentos nos 20 quilômetros de encanamento que irrigam o terreno. A medida contribui para evitar desperdícios de água.
Outra ação com mesmo norte envolve o uso de uma tecnologia para medir a quantidade de água usada na irrigação das mudas – maneira de melhorar o manejo para respeitar o limite de água a ser extraío dos quatro poços artesianos autorizados pelo governo do Estado para serem usados pelo viveiro.
— Criamos uma dinâmica positiva de atração de jovens, de retenção de colaboradores e de engajamento da equipe. Há impacto positivo na sociedade, no consumidor e em nossos vizinhos. E, tendo menor uso e consumo de água, há menor uso de energia, o que traz resultado positivo. Muitas empresas estão vendo a necessidade de atuar proativamente para não ter regulamentação mais dura em virtude de climas extremos. No Rio Grande do Sul, convivemos com a seca e seu impacto no agronegócio, o que pode causar restrição do uso do recurso. Há ações para diminuir os riscos de exposição e gerar até impacto positivo — diz Maurício Harger, diretor-geral da CMPC Brasil.
O que diz a Corsan
“Desde 2019, a Corsan vem aumentando anualmente o volume de investimentos realizado. Tal montante saltou de R$ 332 milhões, naquele ano, para R$ 643 milhões em 2022, valor esse que é um recorde na história da Companhia. Porém, o Capex (plano de investimentos) da empresa prevê a necessidade de se investir mais de R$ 1 bilhão/ano para atender às metas de universalização dos serviços, estabelecidas pelo novo marco legal do saneamento (Lei federal nº 14.026/2020). Esse é um dos motivos pelos quais o governo do Estado optou pela privatização da Corsan, visando ainda ganhos em eficiência e agilidade, uma vez que, atualmente, a Companhia enfrenta as amarras legais de um órgão público para realizar contratações, o que impacta no prazo das entregas. A Corsan tem baixo índice de coleta e tratamento de esgoto, mas a cobertura de abastecimento de água é de 97%.
Em relação às perdas de água, a Companhia trabalha com metas de redução no âmbito da agenda ESG da empresa, e parte relevante dos recursos para esse trabalho é proveniente de parceria com a International Finance Corporation (IFC), do Grupo Banco Mundial. No valor de até R$ 450 milhões, esse financiamento contempla ações de redução de perdas de água, um inventário de emissões de CO2 e a elaboração de um plano de ação socioambiental. Com essa parceria, a Corsan se tornou a primeira empresa de saneamento do mundo a aderir à iniciativa Utilities for Climate, da IFC. O índice de perdas da Companhia é de 43%, em linha com a média nacional, ainda que haja dúvidas sobre a exatidão desses números em relação a várias regiões do Brasil”.