Em meio à pandemia, que acentua a desigualdade social, o país ensaia mudança em uma área repleta de gargalos e crucial para melhora da qualidade de vida. Aprovado pelo Senado na quarta-feira, o marco regulatório do saneamento básico pretende facilitar a participação da iniciativa privada no abastecimento de água e na coleta de esgoto.
Especialistas consideram que a medida pode destravar investimentos e resultar em avanços nos serviços prestados à população. Isso não quer dizer que o texto esteja livre de desafios. Processos de concessão não ocorrem do dia para a noite. Logo, precisam de segurança jurídica e regras claras, levando em conta o cenário de cada região.
– Esgoto na frente de uma casa não pode ser considerado algo normal. A ideia de alavancar o saneamento só com recursos públicos não vingou. A expectativa com o marco é positiva. Mas é importante destacar que o poder público precisa continuar com controle sobre o setor, para permitir que as metas sejam realmente cumpridas. O Rio Grande do Sul, por exemplo, tem realidades muito distintas – avalia o biólogo Jackson Müller, professor da Unisinos.
A mudança na legislação prevê que as redes de atendimento sejam universalizadas até 2033. Há possibilidade de estender o prazo por mais sete anos, caso seja comprovada inviabilidade técnica ou financeira do projeto em questão. A nova lei também sinaliza que os serviços podem ser ofertados em blocos de municípios. A ideia seria aproximar localidades mais atrativas daquelas menos atraentes aos olhos de investidores, evitando que populações fiquem desassistidas.
— Estamos falando de regiões muito diferentes no país. É preciso pensar nos centros urbanos, sem esquecer áreas mais distantes – diz o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O marco legal começa a sair do papel no momento em que o Rio Grande do Sul carece de infraestrutura e deseja aumentar a atuação de empresas privadas no tratamento de esgoto. Em março, o Piratini assinou contrato de parceria público-privada (PPP), na Região Metropolitana, envolvendo a Corsan. Agora, estuda acordos similares no Interior.
– O marco traz maior segurança jurídica e pode atrair investimento privado. Mas é importante não criar falsas expectativas na população. A aprovação não significa que o capital virá no dia seguinte. Há um período para maturação dos projetos – afirma o secretário estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos Júnior.
As carências do setor podem ser ilustradas por números. Em 2018 (dados mais recentes, divulgados neste ano), 67,9% da população gaúcha (7,61 milhões) não tinha acesso à rede de coleta de esgoto – os dados desconsideram modelos alternativos, como fossas sépticas. Ou seja, só 32,1% (3,59 milhões) eram atendidos pelo serviço geral. A estimativa é do Instituto Trata Brasil, a partir de estatísticas do Ministério do Desenvolvimento Regional.
Pelo levantamento, apenas 26,2% de todo o esgoto gerado pelos gaúchos recebia tratamento à época. Quando o assunto é rede de água, as estatísticas mostram que 86,4% da população gaúcha (ou 9,68 milhões) tinham acesso ao serviço. Outros 13,6% (1,52 milhão) não contavam com o atendimento – situação que preocupa ainda mais na pandemia, já que a higiene pessoal é recomendada no combate ao coronavírus.
— Até agora, o Brasil não conseguiu dar um salto no saneamento. A origem da empresa, pública ou privada, não importa tanto. A questão é que precisamos de maior competição. Estamos falando de investimentos de, no mínimo, R$ 500 bilhões. Sozinho, o governo não tem mais esse recurso – afirma o presidente-executivo do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos.
Em 2018, 46,9% da população nacional (ou 97,4 milhões) não tinham acesso à coleta de esgoto. No abastecimento de água, a parcela desassistida era de 16,4% (33,1 milhões). Elaborado pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), o relatório do marco legal estima investimento de até R$ 700 bilhões para a universalização dos serviços.
A discussão sobre a mudança na área atravessa décadas no Brasil. No governo Michel Temer, o assunto ganhou força no Congresso. Foram cerca de dois anos de debate, até a aprovação do marco. O presidente Jair Bolsonaro deve sancioná-lo em breve.
As mudanças
A aprovação do marco regulatório do saneamento básico abre espaço para o envolvimento de empresas privadas no setor. Veja as alterações trazidas pelo projeto
Ampliação de serviços
O marco busca universalizar redes de água e esgoto no país até 2033. Para isso, a previsão de investimento é de até R$ 700 bilhões, conforme relatório do projeto. A meta é alcançar cobertura de 99% para o fornecimento de água potável e de 90% para coleta e tratamento de esgoto.
Concorrência
Os municípios não poderão mais transferir a execução dos serviços de saneamento para companhias públicas de maneira direta. Será preciso abrir licitação para que haja concorrência com empresas privadas. Acordos em vigor têm até março de 2022 para serem prorrogados por mais 30 anos. Para isso, as companhias precisam comprovar viabilidade financeira.
Blocos e regulação
Para que municípios menores se tornem atraentes para as empresas, a proposta aponta que as cidades podem contratar serviços de forma coletiva, formando blocos. A adesão seria voluntária. Além disso, o saneamento básico passa a ser regulado pela Agência Nacional de Águas (ANA). O órgão pode oferecer ajuda técnica e financeira para municípios e blocos implementarem planos de saneamento básico.
Subsídios
Famílias de baixa renda poderão receber auxílio, como descontos na tarifa, para cobrir os custos do fornecimento de serviços. Também existe a possibilidade de terem gratuidade na conexão à rede de esgoto
Lixões
O marco estende os prazos da Política Nacional de Resíduos Sólidos para que municípios encerrem os lixões a céu aberto. O critério usado para a fixação é o tamanho das cidades. Os novos prazos vão de 2021, para capitais e regiões metropolitanas, até 2024, para municípios com até 50 mil habitantes.