Por Marcelo Dutra da Silva
Ecólogo, professor na Furg
As cidades avançam por toda parte, e, à medida que transformamos a paisagem e introduzimos novos elementos, também quebramos uma série de conexões e fluxos do processo ecossistêmico, com implicações diretas na natureza. Basta uma espiada rápida nos municípios da nossa costa para perceber que o espaço construído invadiu as margens, matas, dunas e áreas úmidas de diferentes fisionomias. Em muitos casos com a mais completa ausência de planejamento urbano. O que é muito ruim.
A falta de um plano é o maior pecado de qualquer grande cidade, pois sem planejamento e controle das informações a gestão se perde e fica mais difícil para o Executivo definir as prioridades, inclusive ambientais. E, quando não se tem algo que oriente o que deve ser realizado primeiro, tudo passa a ser importante, nada do que se começa é concluído no prazo e toda decisão se mostra confusa e pouco transparente. Em alguns casos, a administração fica tão fragilizada que se sujeita a pressões, tornando-se refém de interesses dos grupos que usam todo tipo de ferramenta, inclusive mexendo em leis, para garantir seus objetivos sórdidos.
Nada parece ser capaz de resistir ao nosso modelo selvagem de impermeabilização do espaço, que permite que áreas naturais sejam consumidas sem qualquer avaliação prévia das consequências, particularmente as áreas úmidas e especialmente depois que foi editada a resolução 380/18 do Conselho Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (Consema), que definiu critérios para a identificação e o enquadramento de banhados em imóveis urbanos. Um instrumento legal, que tem chancelado decisões horrorosas e fortes dúvidas no processo de licenciamento, uma vez que concentra toda atenção no solo, jogando os aspectos biológicos para o segundo plano e ignorando os fundamentais serviços prestados por esses ambientes.
Embora as áreas úmidas sejam reconhecidas como o ecossistema mais rico do planeta, elas estão desaparecendo três vezes mais rapidamente do que as florestas, de acordo com o Global Wetland Outllook, relatório divulgado em 2018 pela Convenção de Ramsar (convenção sobre áreas úmidas de importância internacional). Destaque para a Índia, que perdeu, nas últimas décadas, um terço das suas áreas úmidas para o desenvolvimento urbano e a expansão da agricultura.
As áreas úmidas oferecem lar para 40% das espécies de todo o mundo e fornecem água e alimento para mais de 1 bilhão de pessoas. Chegam a absorver e estocar 50 vezes mais carbono atmosférico do que as florestas tropicais. Atuam com eficiência na regulação térmica. São capazes de armazenar grandes volumes de água, evitando alagamentos no entorno nos períodos de precipitação intensa. São aliadas do espaço urbano. Porém, apesar disso tudo, constituem o tipo ambiental mais degradado na era moderna da humanidade – mais de 80% do território úmido foi alterado e/ou pressionado nos últimos 300 anos, de acordo com o relatório Planeta Vivo da Rede WWF, de 2018.
No Brasil, encontramos a maior área alagável continental do mundo, o Pantanal, e cerca de 30% do território da Amazônia corresponde a áreas úmidas. O litoral brasileiro é riquíssimo em ambientes de áreas úmidas, e aqui, no litoral gaúcho, não é diferente. Nossos banhados, campos úmidos, marismas (banhados de água salgada) e matas palustre compõem a coleção de habitats da costa, que reúne uma parcela significativa da biodiversidade rio-grandense.
Tudo fortemente ameaçado pelo uso e pelas formas de ocupação do espaço. Parte já foi perdida pela expansão das grandes cidades.
Os municípios gaúchos vêm enfrentando um forte crescimento urbano sobre áreas úmidas remanescentes. E tudo na mais completa ausência de planejamento e de uma política de conservação e atenção às mudanças climáticas. O licenciamento tem autorizado construir em áreas de conflito, entendidas pela ciência como de grande importância ambiental – a resolução 380 tem servido de justificativa pelo órgão licenciador. Banhados do interior urbano são interpretados de forma equivocada, a partir de estudos de solo questionáveis, que fogem da avaliação do contexto e do tempo histórico. Uma disputa que põe a comunidade em perigo e refém de questões financeiras, sem perceber que não é possível promover desenvolvimento com destruição da natureza.
Afinal, podemos ter belos prédios, emprego, lucro, renda e receita, e tudo isso sem desconsiderar as pessoas e o meio ambiente. Basta fazer da forma correta.