Uma portaria do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), instituto vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, autorizou a pesca esportiva em unidades de conservação ambiental em todos os biomas do país, incluindo Amazônia e Pantanal. A medida foi publicada no Diário Oficial desta quarta-feira (5) e divide a opinião de especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo.
O ICMBio é responsável pela gestão de 334 unidades de conservação (UCs). A portaria assinada pelo presidente do órgão, o coronel da Polícia Militar de São Paulo Homero de Giorge Cerqueira, condiciona a pesca esportiva à aprovação de um plano de manejo e permite a criação de um sistema de "prestadores de serviços de apoio".
No artigo 27, atribui aos próprios pescadores e prestadores a necessidade de "atentarem à legislação vigente" sobre questões como "uso de petrechos autorizados para utilização na pesca esportiva, espécies (de peixes) cuja captura seja proibida na localidade", entre outros pontos.
A portaria também abre a possibilidade de pesca em unidades de conservação chamadas de integrais, as mais sensíveis sob o ponto de vista da proteção do meio ambiente, desde que a atividade ocorra "em território de população tradicional, em área regulada por Termo de Compromisso ou sob dupla afetação".
Em 2012, o então deputado federal Jair Bolsonaro foi multado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em R$ 10 mil quando pescava ilegalmente na Estação Ecológica (Esec) Tamoios, em Angra dos Reis (RJ). A multa foi anulada pelo Ibama em dezembro de 2018, logo depois da eleição de Bolsonaro à presidência. A Esec Tamoios é uma unidade de proteção integral.
Em seu site na internet, o próprio ICMBio afirma que no grupo das unidades de proteção integral "é permitido apenas o uso indireto dos recursos naturais; ou seja, aquele que não envolve consumo, coleta ou dano aos recursos naturais".
A bióloga Ângela Kuczach, diretora-executiva da organização não governamental Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação, criada em 1998, considera a portaria ilegal, porque seus poderes não devem estar acima da lei federal 9985, de 2000, a chamada Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC). Segundo Ângela, a lei de 2000 serve para preservação da biodiversidade e não permite a extração de qualquer recurso nas unidades de proteção integral.
— A gente tem parques como Fernando de Noronha, Parque Nacional do Pantanal, Lagoa do Peixe que já são pressionados para esse tipo de extração de recursos e que agora ficam muito mais vulneráveis. A pressão se torna ainda mais forte. Nitidamente (a portaria) é um instrumento que fragiliza o sistema nacional de unidades de conservação — disse Ângela.
A bióloga alertou para "precedente sério para extração de outros tipos de recursos naturais".
— Se você (governo) agora está dizendo que agora pode pescar numa unidade de conservação, por que não a caça de animais? Os objetivos primários de um parque nacional são proteger beleza cênica, educação ambiental, turismo. Se agora está dizendo que pode pescar dentro de um parque, vai contra seu objetivo primário.
Ângela também levantou dúvidas sobre a capacidade de o governo fiscalizar o cumprimento da portaria e os planos de manejo.
— A maioria dos parques geridos pelo ICMBio está desestruturada para sua visitação básica, para receber turista ou fazer trilha. A gente tem um caminho longo pela frente. Nenhum ambientalista sério vai se colocar contra o turismo. Só os Estados Unidos arrecadam mais de US$ 40 bilhões só com observação de pássaros. Tem muita coisa para fazer antes de chegar ao ponto de permitir extrair um recurso. Não faz sentido você não desenvolver observação de pássaros e permitir a pesca.
Flávio Lontro, coordenador-geral da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinhos (Confrem), considerou positiva a publicação da portaria, desde que ela venha acompanhada de outras leis e regulamentos que detalhem como seria executada a pesca esportiva. Algumas comunidades veem a pesca esportiva como uma oportunidade de negócios para aumento da renda.
— Não é porque publicou a portaria que já amanhã vai entrar gente para pescar. A gente espera que o ICMBio cumpra os trâmites para poder efetivar a lei — disse Lontro.
Segundo Lontro, há unidades de conservação "que terão pesca e outras não, isso ainda vai ser detalhado".
— A portaria não é um documento definitivo, por si só ele não sustenta — disse o coordenador da Confrem. Ele disse que a entidade participou de conversas com o ICMBio no ano passado, mas não da redação final do texto da portaria.
Júlio Barbosa, da associação dos moradores da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, disse que a pesca esportiva, "dentro de um plano de sustentabilidade, pode dar um retorno financeiro para as famílias". Porém, disse que a regulamentação da atividade precisaria ser instituída "por meio de uma lei, não de uma portaria".
— Essa atividade deve estar regida por um plano de manejo, com prioridade para as comunidades tradicionais. Não pode ser simplesmente para alguém que venha de fora e entre na unidade — disse Barbosa.
Procurado pela reportagem, o ICMBio não havia se manifestado até o fechamento deste texto.