Em janeiro de 2016, um executivo brasileiro recebeu um convite que, em qualquer outra ocasião, seria motivo de celebração. Com 30 anos de casa recém completados, o engenheiro Roberto Carvalho havia sido convocado para assumir a presidência de uma das maiores empresas do Brasil. O problema é que ele tomaria o posto apenas dois meses após a Samarco protagonizar o maior desastre ambiental do país. Carvalho, hoje com 59 anos, abraçou a missão de negociar e implementar as compensações pelo rompimento da barragem em Mariana (MG) e trabalhar pela retomada das atividades de mineração na área – o que ainda não ocorreu. Em passagem pela Capital para uma palestra a convite do escritório de advocacia Auro Ruschel Advogados Associados, o engenheiro, que deixou a presidência da Samarco em março deste ano para atuar em uma firma própria de consultoria, falou com GaúchaZH.
Passados três anos desde a tragédia de Mariana, que lições ficam do episódio?
Eu assumi a presidência da Samarco em janeiro (de 2016), dois meses depois do rompimento, em razão do afastamento do presidente e de mais algumas pessoas, e liderei a Samarco nas principais ações de reparação, de negociação para acordos com o Ministério Público e outras autoridades. Depois desses três anos, o sentimento é muito pesado ainda porque houve 19 mortes. Por mais que você faça, você não consegue... Tudo o que foi feito até então, os acordos, o apoio que os acionistas deram para reparações, em um processo muito complexo, nada vai ser suficiente para reparar quem perdeu familiares. Quatorze pessoas trabalhavam para a Samarco, e cinco eram da comunidade. Difícil ter um dia que eu não lembre desse processo com dor.
O que lhe levou a aceitar a presidência de uma empresa naquela situação e que era vista como vilã por boa parte dos brasileiros?
Quando rompeu a barragem, eu tinha recém completado 30 anos de Samarco. Na Samarco, as pessoas têm uma identidade muito grande com a empresa. Da diretoria na época do rompimento, praticamente todos começaram a carreira lá. Eu era, na diretoria executiva, o diretor há mais tempo no cargo, 14 anos como diretor comercial. Minha vida toda foi na Samarco. Quando aconteceu (o rompimento), por ter morado muito tempo no Espírito Santo, eu fui coordenar as ações lá. Quando rompe uma barragem, não é como a queda de um avião, que ocorre e pronto, acabou. Foi prolongado. Demorou 21 dias para (a lama) chegar ao mar. É como se enfiassem uma faca e, a cada dia, fossem torcendo um pouquinho. Eu estava no Espírito Santo quando fui chamado para ocupar a presidência. Sinceramente, não podia recusar o convite pela minha relação de 30 anos com a Samarco. Muita gente dependia da Samarco. Meu desafio junto com os demais diretores que permaneceram era fazer o possível de reparação, remediação, mas pensar na retomada da empresa porque ela é muito importante para a comunidade de Mariana, para o Estado, para o Brasil. A Samarco representava 6% do PIB do Espírito Santo e 2% do PIB de Minas Gerais. E você não ter condições de retomar a empresa com segurança técnica, política e social só prolonga o sofrimento de todos. Prolonga o impacto do rompimento e não vira essa página.
A perspectiva segue sendo de retomar as atividades em 2020?
Como não estou mais lá, não sei os planos. Havia dois processos de licenciamento para a retomada. As licenças foram suspensas em 2016, e a secretaria de Meio Ambiente propôs um novo processo de licenciamento, corretivo, para operação. E tínhamos outro processo para licenciar a área onde dispor os rejeitos, já que não tem mais a barragem. Conseguimos essa licença em dezembro de 2017 com amplo apoio da sociedade. A mineração é uma atividade muito ensimesmada, então pouca gente conhecia a Samarco. Quando rompeu a barragem, atingiu uma área que não tinha nada a ver com a Samarco. Foi uma dificuldade criar um ambiente de confiança com a crise ocorrida em razão da contaminação.
Toda tragédia pode ser evitada. Mesmo em um terremoto, existem prédios que resistem e prédios que não resistem. Do que se sabia sobre rompimento de barragens, a Samarco usava o estado da arte. Mas sempre há coisas que precisam evoluir.
ROBERTO CARVALHO
Ex-presidente da Samarco
Para o senhor, a Samarco fez tudo o que era possível para conquistar essa confiança?
É difícil falar. Nosso primeiro foco foi o atendimento humanitário. É o primeiro ponto. Você tem de mitigar o sofrimento das pessoas. Não se limitou recursos para isso, principalmente no distrito de Bento Rodrigues, que foi varrido do mapa. As pessoas ficaram ilhadas em um ginásio, e só conseguimos abrir caminho até lá na manhã seguinte. A gente disse que não queria ninguém dormindo em ginásio. Na noite seguinte, já dormiram em pousadas e hotéis da região. E dissemos que, no Natal, já queríamos todos em casas. Ninguém iria passar o Natal em hotel. Nesse ponto, a crise (econômica) ajudou, porque havia muitas casas para alugar em Mariana. Alugamos as casas com tudo, e até o Natal todos se mudaram.
Por outro lado, a empresa recorreu contra cerca de R$ 400 milhões aplicados em multas ambientais pela tragédia. Não deveriam ter sido aceitas e pagas?
A questão não é pelo valor da multa. É porque você tem até multa sobre multa. Tem uma discussão grande de competência, por exemplo, se é do Ibama ou da secretaria de Meio Ambiente local. Porque envolveu dois Estados. E, naquele momento, até para dar uma resposta à sociedade, o que o pessoal faz é multar. Às vezes, você vai ver, e a multa tem uma série de pontos questionáveis. Como executivo de empresa, você tem de esgotar essas situações. Não é pelo recurso, até porque até hoje a Samarco e os seus acionistas desembolsaram mais de R$ 5 bilhões em reparação e indenização. Não é pelo valor, é pela legalidade, que por ser executivo de uma empresa você necessariamente tem de questionar. Depois, muitas multas você negocia reverter para o próprio programa (de recuperação). Estávamos em negociação com governos federal e estaduais para construir um acordo (o Termo de Transação de Ajuste de Conduta).
Essas ações reparatórias vêm sendo feitas pela Fundação Renova, criada na sua gestão. Mas, passados três anos, ainda não foram pagas todas as indenizações, nem foram realocadas em definitivo as famílias atingidas. Não tinha de ser mais rápido?
Poderia ser mais rápido. Mas a gente tem de dividir a responsabilidade por esse processo. Se dependesse única e exclusivamente da gente, já estava tudo pronto. Não falta recurso. Mas o processo leva uma série de dificuldades. Por exemplo, o Ministério Público julgou que a relação da Samarco com os impactados não era equilibrada pelo poder econômico da empresa. Está correto. Então tinha de ter alguém para fazer essa intermediação, uma entidade isenta, que não tivesse prestado serviço para a Samarco, para a Vale, a BHP (controladoras da Samarco). Com muito custo, se chegou ao nome da Cáritas, uma entidade da Igreja Católica, para fazer esse papel. Mas até mobilizar, fechar contrato, ir a campo, cadastrar, acaba por começar o projeto de novo do zero. Isso não acontece da noite para o dia, mas a sociedade não tem conhecimento disso. Ela vê que já tem três anos desde o acidente, e o pessoal continua fora de casa. Agora estão começando os projetos das casas. As pessoas querem as casas do mesmo jeito que tinham, "eu tinha uma sacada assim, meu vizinho era o fulano", e você não pode tirar esse direito delas. Tudo está sendo construído da mesma forma que era. Isso leva tempo. O ideal era que as pessoas já estivessem instaladas, sim, mas tem o processo de licenciamento do terreno, essas questões todas. Mas concordo que tinham de ser mais rápidos o reassentamento e as indenizações.
As pessoas querem as casas do mesmo jeito que tinham, 'eu tinha uma sacada assim, meu vizinho era o fulano', e você não pode tirar esse direito delas. Tudo está sendo construído da mesma forma que era. Isso leva tempo. O ideal era que as pessoas já estivessem instaladas, sim, mas tem o processo de licenciamento do terreno, essas questões todas.
ROBERTO CARVALHO
Ex-presidente da Samarco
Por meio do cumprimento das obrigações, a empresa também espera se livrar do pagamento de R$ 20 bilhões previstos em ação judicial.
Na realidade, o termo (de ajustamento) é um acordo em cima de uma ação judicial de R$ 20 bilhões. Mas ele não determina (valor) mínimo ou máximo, determina os programas que têm de ser feitos, como será a governança e o financiamento. Você tem uma visão mais clara do desembolso nos três primeiros anos, depois depende da evolução dos programas. Por exemplo: o rejeito é inerte, não tem componente tóxico. É melhor para o ambiente retirar o rejeito que está na calha do rio? Como você acessa o rio com máquinas? Tem de desmatar? Se tirar (o rejeito) onde está estável, vai levar para onde? Tem câmaras técnicas que estão discutindo essas questões com especialistas do mundo inteiro. Mesmo eles não têm um consenso em relação a isso. Então isso tudo leva tempo. Isso a sociedade entende que é uma questão técnica a ser discutida. O que realmente precisava evoluir mais rápido são os reassentamentos e as indenizações.
Para boa parte da sociedade brasileira, ficou a sensação de impunidade. Ninguém foi preso, e a maior parte das multas não foi paga.
A impressão é essa mesmo. Não sei se é uma impressão distorcida, mas não avalia o processo como um todo. Mas não adianta brigar contra isso. Tem de fazer o que precisa ser feito. Quando você entregar as coisas, você muda isso. A Samarco era muito fechada na sua área de impacto do empreendimento. Quem conhecia a Samarco sabia da seriedade da empresa, da forma de tratar as coisas. Tanto que as audiências públicas com o pessoal da região foram favoráveis, inclusive com os impactados de Bento (Rodrigues, distrito atingido). Talvez uns 2 milhões de pessoas conhecessem a Samarco, mas a grande maioria da população brasileira, mais de 200 milhões, não sabia nada da empresa. Toda a opinião foi formada através do que foi divulgado.
Como o senhor vê hoje no Brasil a relação entre estímulo a investimentos e proteção ambiental? É uma relação equilibrada?
Posso falar da mineração. É uma atividade de impacto, não tem dúvida, porque usa recurso da natureza. Mas as ações de proteção ambiental são consistentes. A área mais preservada da Floresta Amazônica é onde está o projeto Carajás. A área minerada é mínima, mas a proteção que tem, as reservas estabelecidas pela mineração são robustas. Qualquer projeto de mineração no Brasil, hoje, tem um programa de reciclagem de água impressionante. Mas isso fica muito fechado na mineração. O impacto do agronegócio, por exemplo, é muito maior.
Mas também por abranger uma área muito maior...
São áreas maiores, mas tem a relação do gado com o efeito estufa, o pisoteio no solo, a questão dos agrotóxicos. Na mineração, o respeito com o ambiente é forte, mas é uma atividade de impacto que acaba gerando uma opinião apenas em cima das barragens de rejeitos, de áreas que são lavradas.
Em razão disso, e depois do desastre de Mariana, como o senhor vê o futuro na mineração no Brasil?
Não tem como viver sem a mineração. A Samarco figurava entre as 10 maiores exportadoras do Brasil. Chegamos a faturar US$ 4 bilhões por ano, e com uma contribuição equivalente a quase esse total para a balança (comercial do país), porque importávamos muito pouco. O rompimento da barragem tem de contribuir para repensarmos. A mineração é feita da mesma forma desde o início: você tem uma reserva, uma mina, você vai lavrar esse minério, processar, gerar o rejeito que coloca em uma barragem, e o produto você põe em uma ferrovia, num mineroduto, e exporta. Esse modelo começa a ser discutido. Não tem uma solução melhor que barragem? E, se for barragem, qual o melhor modelo?
Nas empresas, se trabalha muito a a liderança, a gestão, ferramentas modernas de gestão de risco e de crise, mas o nosso aprendizado foi de que a gestão de risco não é bem feita no Brasil. Identifica-se o risco, avalia-se o impacto, mas isso é feito muito internamente. Tem de envolver outras pessoas.
ROBERTO CARVALHO
Ex-presidente da Samarco
O senhor acredita que o empresariado e os gestores públicos estão preparados para enfrentar crises como aquela?
Não. A gente acha que está. Nas empresas, se trabalha muito a a liderança, a gestão, ferramentas modernas de gestão de risco e de crise, mas o nosso aprendizado foi de que a gestão de risco não é bem feita no Brasil. Identifica-se o risco, avalia-se o impacto, mas isso é feito muito internamente. Tem de envolver outras pessoas.
Envolver a sociedade civil, as comunidades?
É, você tem de envolver possíveis exteriores, que você não tem contato, mas que possam ser impactados. Você tem de fazer uma avaliação mais completa de todo o processo. É isso que tenho compartilhado com as empresas. Eu e outros dois ex-diretores saímos (da Samarco) e criamos uma empresa justamente para compartilhar esse aprendizado e ajudar a gestão de outras empresas. Isso independe do tamanho da empresa. Você pode ter uma situação que impacte o seu negócio a ponto até de levar ao fechamento. Por exemplo, se você tem um carro com a logomarca da sua empresa e atropela uma criança em cima de uma faixa (de segurança)? Você tem de conhecer bem o impacto, quem são os envolvidos e trabalhar preventivamente. É difícil estabelecer essas relações depois que acontece (algo negativo). Você começar uma relação do zero já é difícil. Começar devendo é mais complicado ainda.
O Brasil tem vivido crises de todos os tipos nos últimos anos, econômica, política, de reputação. Aprendemos algo sobre como reagir a crises ao longo desse período?
O Brasil tem essa questão política, da corrupção, que é uma grande crise. A Operação Lava-Jato a cada dia pega mais gente, e as coisas não acabam. Nas empresas, a situação é diferente. As empresas bem estruturadas, com gestões bem estabelecidas, precisam é evoluir dentro desta gestão. Enxergar além. Por exemplo: o procedimento do plano de emergência da barragem (regras mínimas de segurança exigidas) não previa sirene. Previa só comunicar a Defesa Civil (em caso de acidente). Mas por que a empresa não poderia ter sido proativa e feito isso (instalado alarmes)? As empresas poderiam ir um pouco além do meramente legal. Porque, depois que acontece (um acidente), estar seguindo a lei pode te dar um alívio na questão judicial, criminal, mas, se acontece, você carrega aquilo para o resto da vida.
As empresas precisam evoluir. Enxergar além. Por exemplo: o procedimento do plano de emergência da barragem não previa sirene. Previa só comunicar a Defesa Civil (em caso de acidente). Mas por que a empresa não poderia ter sido proativa e feito isso (instalado alarmes)? As empresas poderiam ir um pouco além do meramente legal.
ROBERTO CARVALHO
Ex-presidente da Samarco
Pessoalmente, qual o impacto de ter participado diretamente nos episódios de Mariana?
Me mudou muito. Quando acontece uma situação dessas, em que morrem 19 pessoas, você carrega aquilo para o resto da vida. Pensei: "Não quero mais trabalhar como executivo". Queria ir para a carreira acadêmica, já tinha feito mestrado. Mas, depois, pensei que tinha de compartilhar essa experiência. A única coisa que fica de uma situação dessas é o aprendizado. Se você não compartilha isso, você está abrindo mão da única coisa que poderia ser positiva desse processo.
O senhor hoje presta consultorias. Se pudesse voltar no tempo e dar um conselho para a própria Samarco, o que diria?
Alguém recentemente escreveu sobre a arrogância do controle. Você acha que tem o controle e, na verdade, não tem. Só porque uma auditoria fez uma avaliação, você acha que está tudo ok. Esse é o ponto principal. É preciso questionar mais as coisas. Não é questão de não confiar nas pessoas, mas o papel de um conselheiro, de um executivo, é fazer perguntas. Você tem de criar ambiente em que as pessoas se sintam abertas para discutir as coisas.
A tragédia poderia ter sido evitada?
Sim. Se você analisar, toda tragédia pode ser evitada. Mesmo em um terremoto, existem prédios que resistem e prédios que não resistem. Do que se tinha de monitoramento e de conhecimento pelo histórico de rompimento de barragens, a Samarco usava o estado da arte. Mas, como num acidente de avião, sempre há o entendimento de outras coisas que precisam evoluir. Quando houve um acidente com um avião da Varig porque alguém jogou um cigarro aceso no banheiro, passou a ser proibido fumar lá, mudou o tipo revestimento. Toda tragédia pode ser evitada, mas, ao acontecer, você tem de tirar o máximo de conhecimento e compartilhar para que não aconteça mais. Não pode ter uma situação como lá na serra do Rio (de Janeiro), em que todo ano chove e morre gente. Mas, com o poder público, a sociedade enxerga de uma maneira diferente.
Em uma tragédia, a sociedade cobra mais das empresas do que do Estado?
Acho que sim. A cobrança é muito maior sobre as empresas. Não sei por que, acho que as empresas respondem mais, dão mais eco. Do poder público, você vai cobrar de quem?