Aos 17 anos, Angela Wyse costumava carregar um enorme livro sobre Bioquímica pelos corredores da faculdade de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), dizendo aos quatro cantos que seria professora da disciplina. Nascida em São José do Norte, no sul do Estado, Angela se mudara para Rio Grande aos 10 anos. Na cidade, ela e a família criaram raízes. Concluiu os níveis escolares e ingressou na Furg, onde se apaixonou pela Bioquímica.
Fez mestrado, doutorado e virou docente no Instituto de Ciências Básicas da Saúde (ICBS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). De fato, Angela se tornou professora da disciplina que ela mais gostava na faculdade. Mas, hoje, comemora feitos ainda maiores do que esse. Ela está entre os 20 vencedores do prêmio Cientista do Ano 2020, concedido pelo International Achievements Research Center (Iarc) na área ciências médicas e da saúde/ciências da saúde. Trata-se da única brasileira a figurar na lista.
— Esse prêmio é importante pelo reconhecimento de anos de dedicação à pesquisa, a esse empenho que não é só meu, mas de um time de pessoas. Fico muito orgulhosa porque é muita dedicação ao trabalho de pesquisadora, entretanto, reforço que não cheguei aqui sozinha. Espero que o reconhecimento traga visibilidade para a ciência, que vive um momento tão difícil e frágil — diz a docente da UFRGS, que já foi agraciada com o Prêmio Capes-Elsevier, em 2014, e Pesquisador Destaque na área das ciências biológicas no Prêmio Pesquisador Gaúcho em 2018.
Curiosa pelas áreas de ciências da natureza desde a infância, ao deparar com a Bioquímica na graduação soube já na primeira aula o que queria para o resto da vida. A inserção na carreira como pesquisadora se deu quando entrou na UFRGS para cursar o mestrado. Ingressou como participante de um grupo que estudava doenças genéticas hereditárias, e dali não saiu mais:
— Tenho muito orgulho de fazer parte do meu departamento, de fazer parte da comunidade da UFRGS, como professora e como pesquisadora, e de poder contar com um grupo de colegas de pesquisa tão construtivo, persistente e criativo.
A ciência no Brasil
A criatividade e a persistência citadas por Angela dizem respeito a comportamentos que se tornaram necessários frente ao cenário árido vivido pelas universidades e institutos federais brasileiros, já que o Ministério da Educação (MEC) planeja cortar R$ 4,2 bilhões no orçamento das despesas não obrigatórias para 2021. Atitude essa que afetaria, por exemplo, saídas de campo para fazer pesquisas.
Há um anti-iluminismo muito forte no Brasil e em outros países. As pessoas tentam destruir a imagem da ciência, sua importância para a humanidade. Agora, há essa politização em cima da CoronaVac. Não interessa de onde vem o insumo
ANGELA WYSE
Professora de Bioquímica da UFRGS
— Há um anti-iluminismo muito forte no Brasil e em outros países. As pessoas tentam destruir a imagem da ciência, sua importância para a humanidade. Agora, há essa politização em cima da CoronaVac. Não interessa de onde vem o insumo. O trabalho que está sendo feito pelo laboratório responsável é sério e temos que aproveitar o que há disponível para melhorar a qualidade de vida da nossa população — diz a pesquisadora.
Ela ressalta:
— A ciência brasileira cresceu muito nos últimos anos. Avançamos bastante na pós-graduação, houve incentivo à formação de mestres e doutores porque houve investimento. É assim que a pesquisa e a ciência devem ser encaradas, como investimento, como algo que vai trazer retorno depois, porque realmente traz. Um país sem pesquisa tem sua soberania enfraquecida porque acaba dependendo dos outros.
O estudo
No laboratório e em sala de aula, Angela se torna uma detetive em busca de respostas que expliquem o funcionamento do corpo humano e das doenças que se manifestam em nosso organismo. É justamente na Bioquímica que estão alicerçados os caminhos para compreender a fisiologia humana e as engrenagens das enfermidades, já que esse ramo se debruça no entendimento das estruturas, organização e transformações moleculares nas células.
A pesquisadora se dedica a uma tarefa nada simples: entender os mecanismos envolvidos em doenças neurometabólicas, genéticas hereditárias, neurodegenerativas e na isquemia cerebral. Para tentar entender essas enfermidades, ela estuda um aminoácido chamado homocisteína. O composto é fruto da metabolização da metionina – outro aminoácido que faz parte das proteínas –, que é essencial para o organismo e, portanto, deve estar presente na dieta. Depois de ingerido, esse aminoácido pode ser incorporado em proteínas e/ou degradado, liberando grupos metilas, que são substâncias importantes para a saúde das células e seu DNA. Nesse processo, ocorre a formação de homocisteína, que é tóxica ao organismo.
Angela explica as artimanhas criadas pelo corpo para se livrar dessa toxicidade:
— Para se livrar da homocisteína, o corpo promove a formação da metionina, que depende da presença do ácido fólico e da vitamina B12, ou promove a sua quebra, criando diversas substâncias, entre elas a glutationa. Esse é um antioxidante que tem funções muito importantes, como neutralizar os radicais livres responsáveis pelos danos nas células, os quais podem ser formados pela auto-oxidação da homocisteína. A questão é que existem pessoas que nascem com deficiência na enzima da cistationina beta sintetase, que degrada a homocisteína, levando ao aumento de seus níveis no sangue e em outros tecidos. Essa doença se chama homocistinúria. A criança afetada com essa doença nasce normal, mas, após, pode desenvolver alterações cerebrais importantes, como epilepsia e deficiência mental. Além disso, apresentam mais chances de morrer precocemente de infarto do miocárdio, por exemplo.
É nessa seara que a professora da UFRGS entra. Ela se propôs a criar um modelo de estudo que compreenda os motivos pelos quais a homocisteína causa danos no cérebro e no coração. Para isso, ela induziu a doença em roedores. Ou seja, provocou a elevação do nível deste aminoácido no corpo dos animais e avaliou as alterações provocadas.
— Percebi que eles tiveram diminuição da área do hipocampo, que é uma estrutura cerebral responsável também pelos mecanismos de memória, houve alterações nos neurônios, nas mitocôndrias, que são as usinas de formação de energia das células, nos neurotransmissores, nos radicais livres e registro de um aumento nos processos inflamatórios. Saber isso, esses e outros detalhes, abre possibilidade para futuras terapias e tratamentos, o que é fundamental para a melhora da qualidade de vida das pessoas — diz Angela, que também avalia o papel de níveis levemente elevados de homocisteína como fator de risco para doenças neurodegenerativas, como a de Alzheimer.