Uma das cientistas brasileiras de maior destaque internacional, Rosaly Lopes, 63 anos, carrega as memórias da praia de Ipanema, no Rio de sua juventude, para fora da Terra. Integrante das missões não tripuladas Galileo e Cassini, da Nasa, a pesquisadora se dedica a estudar atualmente as condições habitáveis da lua Titã, a maior de Saturno e a segunda do sistema solar. Há 45 anos morando fora do Brasil, ela está no Guinness Book por ter descoberto o maior número de vulcões ativos no universo – 71 apenas em Io, uma das luas de Júpiter. Como integrante da União Internacional de Astronomia, que nomeia acidentes geográficos em planetas e luas, ela batizou de Heitor Villa-Lobos e Tom Jobim duas crateras de Mercúrio, entre outras homenagens ao Brasil. Rosaly é a primeira mulher a assumir o cargo de editora-chefe da conceituada revista Icarus, fundada por Carl Sagan, um dos maiores astrônomos da história. Em outubro, ela falou para 1,7 mil ouvintes em evento virtual promovido pela embaixada e pelos consulados dos EUA no Brasil (veja a palestra aqui). A seguir, os principais trechos da entrevista concedida a GZH.
Em entrevistas anteriores, a senhora afirmou que ser astrônoma é algo que mexe com a imaginação durante a infância das crianças. Mas que, ao chegar à adolescência, muitas pessoas perdem essa curiosidade pela ciência. O quanto sua vivência infantil com os temas do espaço foi determinante para chegar à Nasa?
Foi muito determinante porque eu acompanhava muito o programa Apollo (conjunto de missões espaciais da Nasa, entre 1961 e 1972, com o objetivo de levar os primeiros seres humanos à Lua). Eu me interessava muito sobre aquilo. Quando tinha 12 anos, os primeiros homens pisaram na Lua. Foi emocionante. Um ano depois, vi uma reportagem em um jornal brasileiro sobre Frances “Poppy” Norhtcutt, a única mulher trabalhando no controle de missões em Houston (EUA). Mostraram uma fotografia que até hoje muitas vezes exibo em palestras. Me inspirei muito nela. Naquela época, a gente só via homens trabalhando no centro espacial. Ela, sendo mulher, me inspirou muito. Na adolescência não perdi o interesse: gostava muito de ficção científica, lia livros desse gênero, gostava de ciências. O que comentei em uma entrevista é que não são todos os adolescentes que perdem o interesse por ciências. O problema é maior com as meninas, que começam a se interessar por namorar e acham que aquilo não é muito feminino. Os tempos estão mudando, mas ainda há algo disso. Inclusive a primeira astronauta americana, Sally Kristen Ride, tinha um programa educativo para meninas pré-adolescentes, porque é nessa etapa que elas começam a perder o interesse.
O ambiente na Nasa ainda é muito masculino?
Já melhorou bastante. Entre os jovens, há muito mais mulheres do que antes. Mas, em ciências planetárias nos EUA, por exemplo, há mais ou menos 30% de mulheres. Na fase jovem, deve ser um pouco mais. Na minha idade, há mais do que havia 10 ou 20 anos atrás. Quando comecei, realmente não havia muitas mulheres na área. Eu me acostumei a ser a única mulher em uma reunião. Isso não me incomodou, apenas fiquei acostumada. Meninas e meninos, quando pequenos, são interessados por ciências. A percentagem é a mesma, de acordo com estudos, mas, quando começam a ficar adolescentes, isso muda. Muitas meninas se desinteressam nessa fase. Talvez seja porque é uma coisa que não é tradicional para as mulheres fazerem.
Um meteorologista costuma ouvir na rua as pessoas perguntarem, a todo instante, se vai chover. Imagino que a senhora deva escutar, se há vida fora da Terra. Qual a sua opinião?
Acho que é muito possível haver vida fora da Terra, inclusive estou liderando esse projeto sobre a lua Titã, de Saturno, que tem um oceano embaixo de uma crosta de gelo. Há material orgânico na superfície. Nosso projeto está estudando se existem condições habitáveis nesse oceano. É uma das questões principais da Nasa no momento. As missões à Marte e a esses oceanos são justamente para buscar sinais de vida ou sinais de condições favoráveis à vida.
A presença de material orgânico não significa, necessariamente, que haja vida?
Vida é material biológico, alguma bactéria. Não estamos falando de vida inteligente nem de vida no sentido mais evoluído, como animais. A dificuldade de a gente dizer se realmente pode existir vida ou não é porque não sabemos nem entendemos direito como a vida surgiu na Terra. Por isso, é tão importante descobrir vida em outro planeta, porque vamos saber mais sobre as condições necessárias para a vida se desenvolver.
A senhora é pioneira da descoberta dos vulcões fora da Terra. Qual a importância de se estudar vulcões em outros planetas?
O vulcanismo, como todos os fenômenos geológicos, quando você os estuda fora da Terra, está usando outros planetas como se fossem laboratórios naturais. Porque, na Terra, a gente tem sempre a mesma gravidade, condições muito similares para os vulcões. O conhecimento sobre vulcões se torna muito maior quando você começa a estudá-los em outros planetas. Por exemplo: uma coisa que descobrimos é que a Terra é o único planeta onde há movimento de placas tectônicas que controlam o vulcanismo. Outros planetas não têm isso. É uma coisa muito específica da Terra no sistema solar.
Isso significa que não há terremotos em outros planetas?
Há terremotos, mas são diferentes. Quando há o impacto de um meteorito em outro planeta, sem atmosfera, isso causa um pequeno tremor de terra. E há movimentos de crosta que não são iguais aos da Terra. Mas uma das perguntas é o que o movimento de placas tectônicas significa para a vida se desenvolver. Achamos que a vida na Terra começou com o vulcanismo nas regiões vulcânicas, embaixo do mar. Achamos que a vida começou no mar e perto dessas fontes de energia que existem na Terra. Há muitas outras perguntas: é necessário ter água na superfície para facilitar o movimento das placas tectônicas porque, quando uma placa tectônica vai para debaixo de uma outra, como na costa do Chile, ela ajuda (para a vida se desenvolver). Há muitas perguntas que a gente começa a desenvolver muito mais quando estuda outros planetas. Por que a Terra tem esse movimento de placas tectônicas e outros planetas não têm? É porque há água na superfície ou por que depende do tamanho da crosta relativo ao tamanho da Terra? Se a crosta for muito grossa, não quebra. Talvez tenha sido o caso de Marte. Há muitas dessas perguntas.
Como a senhora se interessou por vulcões?
Foi uma coisa engraçada. Sempre tive esse espírito de querer explorar outros lugares. Eu queria ser astronauta, inclusive. Mas vi que, sendo brasileira, mulher e muito míope, não ia dar. Então, decidi estudar astronomia. E, quando eu estava estudando na Universidade de Londres, no último ano eu fiz um curso de geologia dos planetas, e o professor era muito bom. Ele me inspirou muito. Certo dia, ele não foi dar aula e mandou um jovem assistente. Esse disse: “O monte Etna, na Sicília, entrou em erupção, e o professor teve de ir para lá”. Eu achei aquilo muito interessante: o vulcão explode, e o professor tem de ir. A combinação daquilo com o fato de eu ter gostado tanto daquele curso... Perguntei ao professor se poderia fazer um doutorado com ele, e ele me aceitou. Foi aí que comecei a ir até os vulcões.
Muitas coisas vieram do programa espacial, incluindo o telefone celular. Desenvolvemos tecnologias em miniatura porque, quando você lança uma nave, tudo precisa ser pequeno e leve, porque senão você precisaria de foguetes muito maiores. Todas as ciências, inclusive a biologia, avançam por causa do programa espacial.
A senhora visitou muitos vulcões?
Muitos. Em todos os continentes, até na Antártica. Já fui a Erebus.
Como surgiu a ideia de batizar crateras de Mercúrio com nomes como Tom Jobim, Villa-Lobos. Foi saudade do Brasil?
Nomes de crateras e montanhas em planetas e luas são dados pela União Internacional de Astronomia. Há um comitê, hoje em dia faço parte dele. Quando você vai escrever um trabalho científico, é muito mais fácil se referir a um nome do que dar latitude e longitude. Então, esse comitê dá nomes quando necessário. Quando estávamos na missão Galileo, eu e alguns colegas fizemos uma lista de vulcões que a gente precisava batizar. A gente poderia sugerir nomes de acordo com o tema. E o tema era figuras mitológicas, com alguma coisa a ver com fogo, vulcão ou trovão. Eu percebi que não havia nenhum nome de deuses indígenas brasileiros no sistema solar. Então, eu sabia de Tupã, o deus do trovão. Sugeri esse nome. Também pesquisei um pouco Monã, que é outro deus. Aí, fiz a proposta desses dois nomes e foram aceitos. Depois, fiquei interessada nesse comitê de nomenclatura, e eles me convidaram a fazer parte dele. Aí, comecei a ver se havia nomes brasileiros, e há em alguns lugares. Villa-Lobos já tinha em Mercúrio. Pensei: por que não Tom Jobim? Ao final, alguém pediu e aí ficou Tom Jobim em Mercúrio. Sou de Ipanema, então tenho uma afeição especial pela música Garota de Ipanema.
Hoje, qual é seu principal trabalho na Nasa?
Faço várias coisas. Sou chefe de um time internacional que está estudando as condições habitáveis de Titã, aquilo que a gente falou de procurar se há embaixo da crosta de gelo esse oceano líquido e se teria condições de desenvolver vida. Titã tem muito material orgânico na atmosfera, na superfície. Então, uma das partes do projeto é ver se esse material orgânico pode penetrar no oceano, porque daí as condições seriam mais favoráveis à vida.
Esses dados são analisados a partir de missões com naves não tripuladas?
Muitos são dados da missão Cassini (que explorou por 13 anos as luas de Saturno), mas também há observações do radiotelescópio Alma, no Chile. Também tem muitos trabalhos teoréticos, temos biólogos que estão reproduzindo as condições do oceano, em termos de temperatura e pressão, e colocando vários tipos de bactérias para ver se elas sobrevivem. Minha parte é mais o criovulcanismo. Se há vida nesse oceano, é necessário trazê-la para a superfície. Caso contrário, nunca se vai achá-la. Então, analisamos quais os sinais de vida que poderiam ser trazidos para a superfície atmosférica. É um trabalho multidisciplinar: temos químicos, biólogos, astrônomos e geofísicos estudando o interior de Titã. Inclusive nesse projeto encaixamos um brasileiro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o Alvaro Penteado Crósta, que veio trabalhar comigo no ano passado por seis meses e é especialista em crateras de impacto. Agora, estamos estudando se o impacto de meteoritos em Titã poderia ter penetrado essa crosta e levado material orgânico ao oceano. Mas tenho colaboradores na Franca, na Inglaterra...
Alguns anos atrás, a epidemia de sars, na Ásia, não se espalhou tanto. Uma das razões é que as pessoas não viajavam tanto naquela época. Em 20 anos, o número de viagens internacionais aumentou muito. O coronavírus se espalhou mais rapidamente. O nosso mundo mais global, com viagens aéreas mais acessíveis, tem esse lado ruim: é muito difícil conter um vírus em um determinado lugar.
A senhora trabalhou no laboratório de propulsão a jato da Nasa. É a área que desenvolve a propulsão das naves não tripuladas?
O nome é histórico. Hoje em dia, tem muito pouco a ver com propulsão. Atualmente fazemos instrumentos, naves, pesquisas, e as missões não tripuladas. Muitas são feitas e controladas pelo laboratório. Temos um time de navegadores espaciais, uma tarefa muito especializada, principalmente de matemáticos, para calcular as órbitas das naves. Temos muitos cientistas e engenheiros desenvolvendo novas tecnologias para o espaço.
O laboratório faz toda a gestão da missão das naves não tripuladas?
Sim, mas às vezes a gente compra as naves. São feitas por companhias aeroespaciais. Se existe uma coisa que é comercializada, a gente contrata uma companhia para fazer. Mas algumas coisas são realmente únicas. Então, nosso laboratório faz. O laboratório começou com alguns estudantes e pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Catech), em Pasadena. Nos anos 1950, estavam lançando foguetes pequenos, e o pessoal da Catech disse: “Não, esse negócio às vezes explode, vocês não podem fazer aqui em Pasadena. Vão para lugar mais distante.” Então, foram para um lugar perto das montanhas, e aí começou. Construíram uma casinha, que depois, se tornou o laboratório de propulsão a jato. O nome, então, é mais histórico.
A era dos ônibus espaciais terminou devido a vários problemas, como orçamento e segurança. A senhora acha que, em algum momento, a Nasa vai voltar a apostar em missões tripuladas?
Sim, ainda temos astronautas na Estação Espacial Internacional. Agora, a Nasa está desenvolvendo o projeto Artemis, para voltar à Lua. Artemis era a irmã gêmea de Apollo. O projeto Artemis vai levar a primeira mulher à Lua.
Durante a pandemia, percebemos a fragilidade do ser humano, mesmo em um mundo altamente tecnológico. Qual a importância da pesquisa espacial para se descobrir algo sobre o planeta e os humanos?
Muitas. O desenvolvimento de tecnologias do programa espacial é incrível. Muitas coisas vieram do programa espacial, incluindo o telefone celular. Desenvolvemos tecnologias em miniatura porque, quando você lança uma nave, tudo precisa ser pequeno e leve, porque senão você precisaria de foguetes muito maiores. Com relação à biologia, agora sabemos que vida pode existir em muitos lugares, incluindo os muito frios, como os lagos embaixo do gelo da Antártica, áreas em que, anos atrás, não se imaginava que pudesse existir. Todas as ciências, inclusive a biologia, avançam por causa da tecnologia do programa espacial. Estamos passando por um momento em que a tecnologia e a ciência vão nos salvar, porque estamos desenvolvendo vacina e medicamentos para tratar o coronavírus. Alguns anos atrás, houve a epidemia de sars, na Ásia, e não se espalhou tanto. Uma das razões é que as pessoas não viajavam tanto naquela época. Em 20 anos, o número de viagens internacionais aumentou muito. O coronavírus se espalhou mais rapidamente. O nosso mundo mais global, com viagens aéreas mais acessíveis, tem esse lado ruim: é muito difícil conter um vírus em um determinado lugar.
A senhora acha que a ciência sai fortalecida da pandemia?
Sim, muito. Os cientistas que estudam isso vão aprender muito mais sobre os vírus em geral.
Começamos a entrevista falando sobre o interesse de crianças e adolescentes sobre ciências. Como a senhora avalia a educação no Brasil, onde a ciência não é muito valorizada?
Não tenho uma experiência direta com a ciência ensinada no Brasil, porque estou há muitos anos fora, mas uma coisa que me impressiona no país é o interesse dos jovens. Eles são muito interessados em ciência e tecnologia. Relativamente, acho que até mais do que nos EUA. Tenho muita esperança de que os jovens brasileiros vão se dedicar e desenvolver essa área, que é crucial para o mundo. É necessário, para todos os países, investir em educação, porque isso significa treinar a próxima geração, que vai trazer retorno ao país. A educação é um investimento, mas acho que jornalistas também têm um papel muito importante ao escreverem artigos interessantes sobre ciência, para ajudar a despertar o interesse não só nos jovens, e sim, também, nos pais. Para que, quando um filho disser que quer estudar alguma ciência, os pais deem apoio, que é uma coisa importante.