A diversidade do brasileiro pode carregar respostas para a prevenção da hipertensão, do diabetes e de diferentes tipos de câncer e ainda revelar caminhos percorridos por povos já extintos. Líder do projeto DNA do Brasil, lançado em dezembro de 2019, a professora Lygia da Veiga Pereira fala com otimismo sobre o sequenciamento de genomas no país, que nasceu pela necessidade de incluir o brasileiro nas pesquisas sobre medicina de precisão. Hoje, 80% dos dados no mundo são feitos com base em pessoas de genomas de ancestralidade europeia, o que faz as descobertas serem mais precisas apenas para essas populações. Resolver a falta de diversidade na área virou prioridade.
A análise da miscigenação brasileira contribui ainda para estudos antropológicos. Dados levantados com 1,2 mil voluntários já confirmaram, por exemplo, a predominância do cromossomo Y europeu, paterno, na composição genética da população, enquanto a maior parte da herança materna é de origem africana e indígena. A seguir, Lygia aborda o avanço do projeto, as implicações das novas tecnologias de DNA e o desenvolvimento recorde da ciência durante a pandemia do novo coronavírus.
Um dos gráficos do estudo DNA do Brasil mostra que a maior parte da herança materna da população é de origem africana (36%) e indígena (34%), enquanto a herança do cromossomo Y (paterno) é 75% de origem europeia, 14,5%, africana, e 0,5%, indígena. O que o DNA conta sobre a história do país?
Essa assimetria é bem característica de quando se tem um povo dominado e um povo dominante, e a nossa colonização foi assim. Você tinha os europeus, que eram um povo dominador, e africanos e nativo americanos, que foram o povo dominado. Isso não é uma novidade, estudos como os do professor gaúcho Francisco Salzano (1928-2018), que foi o pai da genética de populações do Brasil – inclusive minha parceira nesse projeto, Tábita Hünemeier, é cria do Salzano –, já tinham observado essa assimetria, mas não usando o genoma inteiro, porque na época não havia essa capacidade. A gente está agora confirmando isso, de uma forma aprofundada. Estamos conseguindo complementar desde dados arqueológicos, que detalham melhor como o Homo sapiens saiu da África e foi se espalhando por todos os continentes, até coisas mais recentes, como essa formação da população brasileira sendo resultado dessa assimetria dos cruzamentos, em que você tem o macho dominante predominando e as fêmeas dominadas.
Com as informações já coletadas, é possível caracterizar o DNA de populações de diferentes regiões do país?
A gente está começando isso. Usando outros métodos de análises mais superficiais do genoma, já se sabe que, na Região Sul, há uma predominância europeia. Já no Rio de Janeiro e na Bahia, há uma dose africana mais acentuada. Nos primeiros 1,2 mil genomas sequenciados, uma coisa que já se consegue ver é que cada brasileiro é esse mosaico com diferentes frações de DNA de origem europeia, indígena e africana. E uma coisa que nos deixa entusiasmados é o quanto estamos conseguindo identificar genoma de ancestralidade indígena.
Houve uma exclusão do DNA indígena do brasileiro, sobretudo do lado paterno?
Do cromossomo Y, sim. Sem dúvida, a gente tem uma perda do cromossomo Y devido ao processo de dominação dos europeus sobre os índios. Os índios homens tiveram pouca oportunidade de gerar descendentes e passar seu cromossomo Y. Mas, no resto do genoma, consegue-se recuperar grandes frações de DNA de origem indígena e de populações que não existem mais. Fragmentos do DNA delas sobrevivem no brasileiro atual. Além de todas as implicações médicas para a saúde, há toda essa parte antropológica, histórica. Ao sequenciar os brasileiros atuais, vamos reconstruir genomas de populações indígenas que não existem mais, mas seguem vivas um pouquinho em cada um de nós.
E quanto à influência do DNA de origem africana?
É outra parte da nossa história. Metade dos africanos que saíram do continente como escravos vieram pro Brasil, são 5 milhões no total. E vieram de diferentes regiões da África, que nunca haviam se encontrado e vieram se encontrar no Brasil. O que a gente começa a ver são misturas de DNAs africanos que não existem na África, porque são de populações distintas, geograficamente separadas, que foram colocadas na marra juntas no Brasil. De novo, poderemos entender qual é o impacto dessas combinações. Com a análise de DNA, será possível dizer quais regiões da África estão na ascendência de cada um dos brasileiros analisados. A gente vai recuperar a história dessas pessoas.
80% dos sequenciamentos genéticos eram com pessoas de ancestralidade europeia. Por isso, não se tem a mesma precisão de diagnóstico em asiáticos, africanos, latinos. Então, para quem se estava fazendo essa ciência toda?
Como surgiu o projeto? De que forma os dados do brasileiro contribuirão para a genética mundial?
Há muito tempo já se falava em fazer o projeto de genoma do Brasil. O brasileiro não é marciano, mas tem uma mistura única, que é diferente da miscigenação de outras populações. Só que esses projetos eram muito caros, e sempre tem um cobertor muito curto para a ciência no país. Aí, no fim de 2017, começaram a sair artigos sobre a falta de diversidade dos bancos de dados de genomas no mundo, mostrando que 80% do que estava sendo feito de sequenciamento eram com pessoas de ancestralidade europeia. Então, resolver a falta de diversidade virou uma prioridade. Porque duas coisas ficaram muito claras. Primeiro, quando se baseia essas pesquisas de genoma em uma população de uma ancestralidade só, todas as descobertas de riscos baseados na genética são mais precisas para essas populações. Por isso, quando se vai aplicar as mesmas metodologias em genomas com ancestralidades diferentes, sejam asiáticos, africanos, latino-americanos, não se tem a mesma precisão de diagnóstico. Então, para quem se estava fazendo essa ciência toda? Para quem estamos desenvolvendo a medicina genômica? É uma questão ética. A segunda questão é a perda de oportunidades de fazer novas descobertas. Quando você sequencia populações diferentes, há maior probabilidade de fazer descobertas, de encontrar novas variantes genéticas associadas a doenças ou características humanas. Nesse momento, juntamos uma equipe. Se havia falta de diversidade, uma coisa que o Brasil tem é diversidade. Era chegada a nossa hora.
Geneticamente falando, o brasileiro é...
Muito interessante. O brasileiro será uma fonte de novas descobertas para toda a humanidade.
O estudo precisou recorrer à iniciativa privada para ser realizado. Há alguma parcela de apoio do poder público?
O projeto DNA do Brasil foi lançado só com a parceria da iniciativa privada. A gente montou esse projeto e tentou sair vendendo. Na época, era uma confusão de governo, que cai, que volta, enfim, e resolvemos bater na porta da iniciativa privada. Mas acabei me decepcionando bastante...
O cenário é de pouco investimento em ciência?
É, todo mundo achou lindo o projeto, maravilhoso, fofo, mas “olha, não é exatamente isso”. Teve uma empresa que disse: “Professora, a gente achou seu projeto lindo, mas tem um problema, né. O que a gente vai dar para os nossos clientes? Isso não tem ingresso de show”. Mas a Dasa e o Google Cloud abraçaram o projeto. Então, em dezembro de 2019, quando foi lançado, não tinha nenhum financiamento público. O Ministério da Saúde, na época, estava pensando em como fazer um programa de genômica e medicina de precisão, e aí apresentei a eles o DNA do Brasil, que se chamava Genomas Brasil. Eles adoraram, pediram para ficar com o nome. No dia 14 de outubro, então, no Palácio do Planalto, ocorreu o lançamento do Genomas Brasil. O programa tem uma parte de genômica com dois braços, um populacional, que é o DNA do Brasil, e um outro de doenças raras, que está sendo capitaneado pelo (Hospital Israelita Albert) Einstein, em que estão sequenciando o genoma de brasileiros com doenças raras. Inclusive o grupo do professor Roberto Giugliani, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também vai contribuir muito nessa parte. O Rio Grande do Sul tem um grande centro de pesquisas da genética das doenças raras. E há o braço de terapias avançadas, em que vão investir no desenvolvimento de terapia gênica e terapia com células-tronco. A ideia é que o nosso DNA do Brasil vire o braço de genômica populacional desse grande programa. Foi quando o Ministério nos deu R$ 8 milhões, que nos proporcionaria 3 mil sequenciamentos de genomas, só que, com a alta do dólar, a gente só vai conseguir fazer 2 mil com esse valor. Há os 3 mil possibilitados pela Dasa e 2 mil da verba obtida em 2019. E, agora, apresentei o projeto para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que também está se preparando para nos apoiar.
Como o DNA do Brasil coloca o país no cenário internacional da ciência genética?
Ele nos insere no mapa de sequenciamentos de genomas, que tem o Reino Unido sequenciando 500 mil indivíduos, a Irlanda, 400 mil, a Arábia Saudita, 10 mil, a Índia, 10 mil. O Catar vai sequenciar a população inteira: 300 mil pessoas. Singapura, 100 mil. China, Coreia do Sul e Estados Unidos, 1 milhão de genomas cada. E no Brasil a gente tinha um vazio. Estamos começando com as pernas que temos.
De que forma prática o DNA do Brasil pode ser aplicado na medicina?
O impacto imediato é na interpretação de testes genéticos. Você pega uma brasileira cuja mãe teve câncer de mama e ela está querendo saber se ela tem alguma predisposição genética para isso. Ela vai fazer um teste genético no qual é sequenciado esse gene BRCA1. Aí, a gente precisa interpretar essa sequência. Quando você sequencia um gene, pode achar uma série de variações da sequência desse gene. Essas variações podem ser normais, são variações que existem, que é o que faz cada um de nós ser um pouquinho diferente um do outro, nosso DNA não é idêntico. Ou essa variação pode ser uma causadora de doença. E aí o grande desafio é como você vai saber se encontrou uma mudança, se aquilo é uma alteração comum na população ou se pode causar uma doença. Você vai procurar, nos bancos de dados de genomas, se aquela alteração já foi descrita numa parcela da população. Se já foi, ótimo, é uma coisa normal, não tem problema. Se não está naquele banco de dados, você liga um alerta. Isso pode ser uma alteração que causa doença. Só que como os bancos de dados têm informação 80% de europeus, pode ser que aquela alteração não esteja nesses bancos de dados não porque ela causa doença, mas porque ela é de ancestralidade indígena ou africana. Então, o DNA do Brasil, ao gerar as sequências de brasileiros, está fazendo um catálogo das variações que existem na nossa população. Isso tem um impacto direto na melhora dos diagnósticos genéticos para a nossa população. Agora, esses diagnósticos genéticos têm que estar disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), para que toda a população se beneficie. O objetivo desse programa do governo, Genomas Brasil, é inserir a genômica no SUS.
Quando, ao tratar o paciente, você adiciona informações sobre a genética, você consegue entendê-lo melhor. Você pode adotar medidas preventivas sabendo da predisposição genética. A gente daqui a pouco vai saber, baseado na sua genética, qual é o medicamento mais eficaz para você.
Como as informações genéticas podem ajudar nos tratamentos de certas doenças?
Quando, ao tratar o paciente, você adiciona informações sobre a genética, você consegue entendê-lo melhor. Por exemplo, no caso de câncer, se você tem a sequência do tumor desse paciente, você é capaz de desenhar uma quimioterapia mais eficiente. Daqui um pouco, ao sequenciar o genoma de uma pessoa, a gente vai poder dizer qual é a predisposição dela para ter diabetes ou hipertensão. Você pode adotar medidas preventivas sabendo da predisposição genética. A gente daqui a pouco vai saber, baseado na sua genética, qual é o medicamento mais eficaz para você.
Nossos hábitos influenciam na genética de gerações futuras?
Há duas classes de doenças com componentes genéticos: as raras, que são muito graves, como a fibrose cística, a anemia falciforme, distrofia muscular, mas que do ponto de vista genético são simples, porque são resultados da alteração em um gene. E as doenças comuns, como hipertensão, asma, diabetes, Alzheimer, Parkinson, maioria dos cânceres, chamadas de doenças multifatoriais. Estas são resultado de componentes genéticos e componentes ambientais, que em conjunto vão fazer com que você manifeste a doença ou não. Só que o componente genético dessas doenças é muito complexo, não é um gene, são provavelmente pequenas alterações, pequenas variações em centenas, senão milhares de genes, que em conjunto se somam e te dão um risco maior ou menor do ponto de vista genético. Então, a gente ainda não conhece toda a genética dessas doenças, e projetos como o do DNA do Brasil vão permitir que se consiga descobrir um pouco mais.
Se eu tenho predisposição genética para alguma doença e, sabendo disso, levo uma vida saudável e me previno, há chance dos meus filhos terem essa mesma predisposição?
Não, porque o estilo de vida não modifica a genética. A prevenção será boa para uma pessoa, mas não para seus descendentes.
O DNA pode explicar também características culturais, como o jeitinho brasileiro?
A gente não tem nenhuma evidência de um fator genético para o jeitinho brasileiro. O experimento que você teria que fazer para isso era pegar gêmeos e colocar um para ser criado no Japão e outro, no Brasil, e ver os resultados. Mas acho muito mais provável ser uma coisa cultural do que genética.
Como toda nova tecnologia, ela pode ser usada de forma construtiva ou danosa. Mesmo o estudo dos genomas. Será que alguém vai querer usar o DNA para uma forma mais sofisticada de discriminação? É preciso tomar cuidado. Mas o que é muito positivo é que a comunidade científica se dá conta, sabe muito bem disso.
Um povo com características mais miscigenadas teria um organismo mais resistente?
Não sei se há evidência disso. Quando você diz que é mais resistente, vai depender do ambiente em que você vive. O que é bem adaptado e forte em um lugar pode ter uma desvantagem em outro. Mas é preciso estudar, por exemplo, se uma fração de DNA indígena confere algum tipo de vantagem para quem a herdou. Mesma coisa com frações africanas.
Como são as discussões éticas em torno do desenvolvimento das tecnologias na genética? você percebe barreiras ou interferências por conta da religião?
A religião pegou muito quando a gente estava vendo a questão das células-tronco, da célula-tronco embrionária, se podia usar o embrião para pesquisa ou não e se o embrião era vida ou não. Nessa parte de genomas, não mais. O que tem mesmo, e muitas vezes a religião faz esse papel, é levantar um cartão amarelo para saber o que a gente vai querer fazer com essas tecnologias. Como toda nova tecnologia, ela pode ser usada de forma construtiva ou danosa. Mesmo o estudo dos genomas. Será que alguém vai querer usar o DNA para uma forma mais sofisticada de discriminação? É preciso tomar cuidado com o mau uso das novas tecnologias. Mas o que é muito positivo é que a comunidade científica se dá conta, sabe muito bem disso. Desde a época do primeiro projeto genoma humano, há toda uma discussão das questões éticas, legais, sociais, sobre se ter acesso à informação da genética da pessoa, para que isso não seja usado por empregadores, por seguradoras de saúde contra aquela pessoa, por exemplo. Sou otimista, nesse sentido.
Seria necessário um controle por legislação?
Nos EUA existe uma lei que não permite que dados genéticos de uma pessoa sejam usados contra ela por empregador, seguradoras ou empresas de saúde. E é muito importante existir isso, sim, se não as pessoas iriam deixar de ser voluntárias de pesquisa. Vão sequenciar meu DNA e depois a seguradora liga e diz: você tem BCRA1, a sua apólice triplicou de preço. Precisa existir uma proteção para isso. No Brasil, já temos a Lei de Biossegurança, que não permite que sejam feitas modificações genéticas em óvulos e espermatozoides. Disso já estamos bem protegidos.
Na pandemia, o público acompanhou o desenvolvimento científico em tempo real. Por exemplo, com a cloroquina. Só que a ciência precisa de tempo. Ciência séria é feita com tempo.
Uma preocupação é de as informações genéticas serem usadas para montar um “ser perfeito”, como se as pessoas estivessem em um supermercado escolhendo como serão seus filhos...
Esse é que é o nosso medo, porque a tecnologia está chegando perto disso. Agora, esse é um problema com todas as novas tecnologias. Foi descoberta a energia do átomo? Estouramos duas bombas atômicas. Só depois disso criou-se um arcabouço legal e de vigilância para aproveitarmos essa descoberta, e dela até a tomografia computadorizada, entre outras coisas boas, foram consequência.
A pandemia colocou a ciência em evidência e também como alvo de questionamentos, com muitas descobertas postas em dúvida. Como chegamos a isso?
Na pandemia, o público acompanhou o desenvolvimento científico em tempo real, e isso é assim mesmo: você dá dois passos para a frente, um para trás. Como vivemos uma situação de emergência, cada nova descoberta teve uma divulgação muito grande. Por exemplo, com a cloroquina. De fato, um primeiro estudo mostrou que alguns poucos pacientes melhoraram. Isso não foi falso. Acontece que, depois, quando aumentaram o número de pacientes, viram que ela não funciona (contra o coronavírus). Só que, como a gente estava em situação de emergência, esse conhecimento inicial já acabou incorporado na prática médica por alguns. A ciência precisa de tempo. Ciência séria é feita com tempo. O cara vê um resultado e publica, mas isso não deveria ser o suficiente para o presidente da República ficar receitando cloroquina para as pessoas. Não é assim. Neste momento, assistimos a um espetáculo de construção de redes de colaboração científica estabelecida com uma rapidez sem precedentes na história da humanidade. Isso foi positivo. A rapidez com que conhecimentos são gerados tem sido incrível.