Os avanços tecnológicos implicaram mudanças radicais no modelo de negócio de diversas empresas. A internet catapultou plataformas que se valem dos dados de seus usuários para gerar sua própria receita e do compartilhamento de conteúdos para atrair pessoas. Cristina Caldeira, professora e pesquisadora na área de propriedade intelectual na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade de Nova Lisboa, em Portugal, afirma que esse novo cenário impôs desafios à proteção da propriedade intelectual de artistas, produtores de conteúdo e editores.
GaúchaZH conversou com a portuguesa sobre esse contexto, que demanda troca de paradigmas no que diz respeito ao direito do autor, à proteção de dados e outras questões de privacidade que podem impactar até a saúde das pessoas – o setor médico é diretamente afetado pelas transformações digitais dos últimos tempos. Para Cristina, 56 anos, o valor político e econômico que os perfis digitais adquiriram deve ser entendido pelas empresas como uma responsabilidade atrelada à "dignidade humana".
Em 2019, a Digital Single Market (política da União Europeia para mercado digital, comércio eletrônico e telecomunicações) foi aprovada. Esse novo conjunto de regras fecha o cerco em torno das gigantes da internet quanto a direitos autorais. No que consiste essa nova diretriz e qual era sua urgência?
A recente aprovação da Diretiva sobre o Direito de Autor no Mercado Único Digital, que será transposta para os diferentes países do bloco europeu até 7 de junho de 2021, vai provocar uma verdadeira reforma do direito do autor na Europa. Esta diretiva inscreve-se na estratégia para o Mercado Único Digital, desenhado pela comissão europeia em 2015, na qual identifica os conteúdos digitais como um dos principais motores de crescimento da economia. A necessidade de promover um acesso aberto aos conteúdos, desde o audiovisual, à música e aos livros, entre outros, permitindo o desenvolvimento de um mercado e de um quadro regulamentar propícios à criatividade, à sustentabilidade financeira, à ciência e à diversidade cultural, ditaram a criação desse novo instrumento jurídico. A diretiva gerou enorme tensão entre os países. As negociações foram difíceis e quase sempre acompanhadas de falsas questões na comunicação social com frases como "A internet vai acabar". Mas, no essencial, a verdadeira polêmica resulta de a diretiva tocar nas matérias relacionadas ao direito do autor na internet, desafiando o status quo existente e retirando poder das plataformas em benefício das entidades europeias da área da cultura e editorial. Os artigos 15º e 17º foram os mais contestados e são curiosamente os artigos que alteram o equilíbrio de poder entre a indústria cultural/editorial da Europa e as plataformas como a Google ou o Facebook.
Que melhorias a lei traz para a proteção da produção intelectual de artistas?
O novo enquadramento constitui mais um passo na adaptação do direito de autor ao ambiente digital. Com a diretiva, pretende-se evitar a fragmentação e as fricções entre os Estados-membros. É certo que a transposição das leis ditará uma alteração dos regimes jurídicos nacionais em matéria de direito de autor. Contudo, as vantagens são muito grandes, quer ao nível do acesso dos cidadãos a conteúdos em linha em todo o espaço europeu, quer pelas exceções e limitações ao direito de autor a favor da educação, da investigação, do patrimônio cultural. Bem como da inclusão das pessoas com deficiência, de modo a criar um mercado mais justo, inclusivo e sustentável para os autores, as indústrias criativas e a imprensa. O Direito de Autor no Mercado Único Digital renova as exceções e limitações da propriedade intelectual em benefício dos pesquisadores que irão gozar de um ambiente jurídico mais claro e da prospecção de textos e dados, abrindo as portas à inteligência artificial. Isso ocorre ao permitir a análise automática computacional de informações em formato digital tais como texto, som, imagem ou dados. A diretiva contempla também uma exceção à propriedade intelectual a favor da utilização de obras e outro material protegido em atividades pedagógicas transnacionais e digitais em benefício de professores e estudantes. Isso permite tirar pleno partido das tecnologias digitais em todos os níveis de ensino. Uma outra exceção está prevista a favor da conservação do patrimônio cultural. Por exemplo, bibliotecas ou museus acessíveis ao público, arquivos, instituições responsáveis pelo patrimônio cinematográfico ou sonoro, tendo em vista o benefício final dos cidadãos da União Europeia. Podemos afirmar que as leis refletem um esforço para alcançar um equilíbrio entre os interesses dos vários intervenientes. Este é o ponto mais relevante. Não só estabelece medidas que beneficiam os utilizadores (artigos 3º, 4º, 5º e 6º), bem como medidas que beneficiam os autores e titulares dos direitos (artigos 11º, 13º, 15º e 17º).
A nova diretiva na Europa contempla uma contribuição financeira aos editores de notícias. É uma forma de reconhecer e encorajar o papel da imprensa na sociedade, em defesa de uma informação fidedigna.
Qual foi o alerta para tomarem essa decisão? O direito a propriedade intelectual estava ameaçado?
A União Europeia viu-se confrontada com a necessidade de garantir a proteção autoral, quer para salvaguardar a criatividade e o patrimônio cultural na Europa, promovendo o acesso a conteúdos com fins pedagógicos e científicos, quer ainda porque as alterações promovidas pelas tecnologias de informação e comunicação, na medida em que expandiram a obra intelectual, transformaram o direito de autor num direito globalizado, adensando-se os problemas jurídicos relacionados com as tecnologias adaptadas à criação cultural. As tecnologias digitais alteraram a forma como as obras são criadas e exploradas, e também a distribuição e a produção das mesmas, originando novos modelos empresariais. Essa nova realidade fez aumentar a tensão já existente entre o autor e o editor e empresário. Ao abrigo das novas regras, as plataformas em linha terão de celebrar acordos de licenciamento com os titulares de direitos como, por exemplo, produtores de música ou de filmes. Se as licenças não forem concedidas, estas plataformas devem envidar todos os esforços de forma a garantir que os conteúdos não autorizados pelos titulares dos direitos não são disponibilizados no seu sítio na web. A Diretiva atualiza e complementa a legislação existente, de modo a dar uma resposta adequada e eficaz à realidade econômica e às novas formas de exploração que proliferam no mercado internacional, designadamente o modelo das Creative Commons (CC), o mais utilizado no Reino Unido, nos Estados Unidos e nos países do norte da Europa. A aprovação dos artigos 15 (o que aborda a questão de pagamento aos publishers) e o 17 (que fala sobre os conteúdos feitos e publicados por usuários) causou polêmica e foi usado como argumento pelas gigantes da web para afirmar que a internet passaria a ser menos livre. A liberdade está realmente ameaçada? A nova diretiva contempla uma contribuição em termos financeiros e organizativos aos editores de notícias ou agências noticiosas (art. 15.º) para a produção de publicações de imprensa como forma de reconhecer e encorajar o seu papel na sociedade. É uma forma de encorajar a imprensa e ajudar a garantir a sustentabilidade do setor da edição em defesa de uma informação fidedigna. Em benefício dos autores e titulares de direitos, a lei propõe regras no que toca à utilização digital das publicações de imprensa. As novas regras aplicáveis à utilização de publicações de imprensa em linha apenas serão aplicadas aos serviços comerciais, como os agregadores de notícias, e não aos utilizadores. Isto significa que os utilizadores da internet continuarão a ter a possibilidade de partilhar esses conteúdos nas redes sociais. Mas a polêmica, muito alimentada pelas redes sociais, recai sobre o artigo 17.º e a utilização de conteúdos protegidos pelas grandes plataformas da internet. A diretiva impõe que as plataformas adotem medidas de reconhecimento de conteúdos protegidos, com o objetivo de evitar que o material seja publicado de forma ilegítima por usuários. Na prática, as grandes plataformas acabarão por conceder alguns proventos obtidos aos criadores, mediante a atribuição de royalties. Esta é a grande mudança. Desde que as plataformas obtenham autorização dos criadores, os utilizadores podem usar conteúdos, para fins privados e até comerciais. Alguns internautas chegaram a temer pelo fim da internet porque julgaram não ser permitido criar memes ou paródias, a partir de conteúdos de terceiros. Mas tal não se verificou e, mesmo que as plataformas não tenham conseguido obter autorização, os utilizadores podem fazer upload de conteúdos livremente desde que tenha por fim a crítica, a caricatura ou a paródia.
Dentro dos moldes atuais do modelo de negócio da internet, a produção jornalística está ameaçada?
A revolução tecnológica coloca desafios às democracias, e nessa medida podemos dizer que o jornalismo se encontra também em perigo. O que desafia os princípios convencionais são, entre outras coisas, as caraterísticas da própria tecnologia digital, a começar pela sua plasticidade, que nos permite facilmente pesquisar, indexar, alterar conteúdos e usar de forma ilegítima. Porém, a Constituição brasileira e a Constituição portuguesa têm um conjunto de disposições que guiam a regulamentação da liberdade de expressão mediante regras específicas quanto à liberdade de imprensa e meios de comunicação social, incluindo o estabelecimento de uma entidade administrativa independente que assegure essas liberdades. Além disso, prevê alguns direitos particulares de expressão e informação: os direitos de antena, de resposta e de réplica política. Em outras palavras, embora se reconheça que a internet tenha transformado o jornalismo nos seus moldes clássicos, conseguimos ainda assim contextualizar constitucionalmente a liberdade de imprensa, em equilíbrio com outros valores fundamentais, como as liberdades de expressão e informação, educação e investigação.
Quais as consequências de um jornalismo enfraquecido?
O jornalismo assume uma enorme relevância em qualquer Estado de direito. Além de ser indispensável ao desenvolvimento saudável da vida pública nas suas esferas, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa devem ter os seus limites naturais, mas apenas os que decorrem de outros direitos igualmente protegidos pela Constituição. Um jornalismo enfraquecido coloca em causa os valores da democracia, o Estado de Direito e, por conseguinte, os direitos fundamentais dos cidadãos.
Em outubro de 2019, a França colocou a nova diretriz em prática, tornando-se o primeiro país do bloco europeu a dar este passo. Por que isso aconteceu lá primeiramente?
A França é o país europeu mais defensor do criador da obra. A natureza do direito de autor encontra uma forte influência do pensamento francês e na visão do "criador independente" detentor de direitos de natureza pessoal ou direitos morais e patrimonial. Com a Revolução Francesa, nascia a "propriedade intelectual" e um direito de autor ancorado na imagem do criador cuja criatividade se recompensa. O nascimento do direito moral surgiu precisamente na França, em 1814, quando um tribunal reconheceu que um certo autor tinha o direito a que o seu manuscrito não fosse alterado pela editora sem a sua autorização. Em 2019, a França impôs regras mais rígidas em defesa do autor/criador, em oposição a um grupo liderado pelo Reino Unido, partidário do copyright, uma visão mais empresarial e menos defensora dos direitos do criador.
Dá para projetar o que acontecerá com o Google e Facebook nos outros países da Europa?
Discute-se se o Google e o Facebook terão de observar as regras exigentes do Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD), em matéria de proteção de dados pessoais. Julgo que não existe margem para dúvidas a ver pelas várias ações que foram já intentadas na Europa contra o Google, a mais recente pela França. Entramos na era da cultura dos dados e as grandes plataformas não passarão incólumes.
Os países europeus estão avançados na discussão sobre propriedade intelectual?
Sim, mas ainda não se harmonizaram ao ponto de podemos afirmar que existe um padrão europeu de proteção do Direito de Autor. A globalização da obra e a universalidade dos direitos de autor ainda estão sujeitos aos obstáculos que resultam da fragmentação dos regimes jurídicos que enquadram esta matéria. No entanto, vislumbra-se no plano internacional uma teia em torno da propriedade intelectual, através da qual os organismos internacionais procuram proteger, conjugar e estabelecer o mínimo de proteção, além de estabelecerem flexibilidades tanto em relação às regras e à proteção dos direitos humanos quanto à promoção do desenvolvimento.
O uso das novas tecnologias na relação entre o paciente e os profissionais de saúde pode fazer perigar o sigilo, não obstante os inúmeros benefícios no campo da medicina.
Recentemente, pacientes dos Estados Unidos tiveram seus dados vistos por planos de saúde. O que pode ser feito com essas informações?
Dados pessoais são todas as informações de caráter personalíssimo caracterizadas pela identificabilidade e pela determinabilidade do seu titular, enquanto os dados sensíveis são designadamente os dados sobre a saúde, os dados genéticos e os biométricos. O conjunto dessas informações compõe os perfis ou as identidades digitais, possuindo valor político e, sobretudo, econômico, em virtude de poderem constituir a matéria-prima para o uso de softwares diretamente atrelados às novas formas de controle social, especialmente mediante o uso de algoritmos. O direito à proteção de dados pessoais e à privacidade deve ser assumido como uma questão de dignidade humana, de liberdade, de democracia, de igualdade, de Estado de Direito e de respeito pelos direitos humanos. Os dados relativos à saúde carecem de um tratamento especial à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e dos demais ordenamentos jurídicos que atualizaram ou criaram legislação por influência do RGPD. Porém, o direito à proteção de dados pessoais não é absoluto, o que significa que deve ser considerado em relação à sua função na sociedade e ser equilibrado com outros direitos fundamentais, em conformidade com o princípio da proporcionalidade. Assim ,será legítimo a utilização de dados para fins de investigação científica ou para fins estatísticos. Subjacente estará sempre a defesa do interesse público. Relativamente ao tratamento e à livre circulação dos dados sensíveis, quer em Portugal, quer no Brasil, admite-se o tratamento de dados de saúde quando for necessário para efeitos de medicina preventiva, diagnóstico médico, prestação de cuidados, tratamentos ou para gestão dos serviços de saúde e ensaios clínicos, desde que o esses dados sejam usados por profissional de saúde sujeito a sigilo médico ou por outra pessoa obrigada a segredo profissional, e desde que estejam garantidas todas as medidas de segurança da informação. Se os EUA deram acesso a dados de forma ilegítima, terão desprotegido a pessoa humana.
Como manter os dados dos usuários seguros?
Devem ser introduzidas alterações importantes sobre a proteção das pessoas singulares relativamente ao tratamento de dados pessoais sensíveis (saúde, genéticos) que, independentemente do formato com que são coletados, vêm impor novas obrigações aos usuários e a todas as instituições, públicas e privadas. É preciso exigir a adoção de medidas técnicas e organizativas adequadas, que prevejam a pseudonimização (medidas técnicas para assegurar que os dados pessoais não possam ser atribuídos a uma pessoa) e, dessa forma, não permitam a identificação dos titulares dos dados.
Qual deve ser o cuidado dos usuários?
A consequência imediata da internet foi a ilusão de que se tratava de ambiente absolutamente neutro e, consequentemente, seguro. Tal situação acarretou, entre outras coisas, uma espécie de deslocamento de um considerável contingente populacional situado às margens do conhecimento formal que, fascinado pela internet, cede sem maior zelo os seus dados pessoais, inclusive os dados sensíveis, para alcançar uma possibilidade de acesso a um simulacro de cidadania digital e, desse modo, se sentir incluído. Os usuários deverão ser alertados para os perigos da sociedade digital em termos de perda da privacidade e devem exigir o controlo da utilização que é feita dos seus dados pessoais, em especial dos dados de saúde e genéticos. A inteligência artificial oferece, por sua vez, novas oportunidades e enormes desafios. E é sobretudo na cibermedicina que o crescimento da capacidade de computação, a disponibilidade dos dados e o progresso em relação aos algoritmos transformaram a inteligência artificial numa das tecnologias com maior impacto. Ao fazer intervir as novas tecnologias na relação entre o paciente e os profissionais de saúde, inicia-se um novo contexto que pode fazer perigar a confidencialidade, não obstante os inúmeros benefícios no campo da medicina.
O que você tem observado na área de proteção de dados biomédicos?
Um pouco por toda a Europa, discute-se o impacto ético e jurídico da aplicação da inteligência artificial na área da saúde. As aplicações e os dispositivos móveis, utilizados dentro e fora dos ambientes hospitalares e centros clínicos, se por um lado procuram racionalizar custos e melhorar os serviços prestados, por outro lado dão acesso a uma quantidade de dados sensíveis dos pacientes que é tratada e transformada em conhecimento implícito e explícito. Essas informações relevantes carecem de infraestruturas tecnológicas robustas, de modo a proteger os dados pessoais sensíveis, a privacidade do paciente e a confidencialidade da informação de saúde. Paradoxalmente, não obstante a perda iminente de direitos fundamentais, o avanço das tecnologias disruptivas e das health techs (tecnologias da saúde, em inglês) proporcionam oportunidades de mudança nas rotinas dos profissionais da saúde, otimizando tarefas e permitindo a oferta de serviços de qualidade.