A partir desta quinta-feira (24), entra em vigor a nova lei francesa de direitos autorais. O país é o primeiro a transpor para a legislação nacional a diretiva do Digital Single Market (política da União Europeia para mercado digital, comércio eletrônico e telecomunicações) aprovada em abril deste ano, após dois anos de debates.
Em termos simples, o documento prevê que plataformas digitais não poderão fazer uso, sem consentimento, de trabalhos que têm sua propriedade intelectual protegida. Isso quer dizer, por exemplo, que Google e Facebook terão duas opções: ou pagarão pelo uso e pela exibição de trechos de reportagens em suas plataformas, ou passarão a mostrar somente aquelas que têm a utilização liberada por seu criador.
Para Wout van Wijk, diretor-executivo da News Media Europe, entidade representativa dos veículos de comunicação europeus, a lei tem duas consequências imediatas: reconhece profissionais da indústria criativa e os editores de conteúdo da imprensa como detentores de direitos, o que oferece a eles a possibilidade de maior controle e uso comercial destes materiais; e coloca nas mãos das plataformas a responsabilidade de implementar medidas para detectar conteúdo protegido por direitos autorais que está sendo postado em suas plataformas e de concordar com as licenças dos titulares.
— Produzir um conteúdo de qualidade é caro, mas os produtores não veem um retorno apropriado de seus investimentos. Por outro lado, as grandes plataformas usam esse conteúdo e geram bilhões de dólares com ele. Esse desequilíbrio precisa ser corrigido se queremos sustentar uma imprensa livre e independente — defende Wijk.
As gigantes do ramo da tecnologia, que veem novamente o cerco se fechando em torno delas, reclamam, já que lucram com a publicidade aplicada sobre os conteúdos que exibem. É justamente esse tipo de fonte de renda que está na mira da União Europeia (UE). A legislação determina que é preciso haver contratos de licenciamento, ou seja, repasse de verba a músicos, artistas, autores, editores de notícias, fotógrafos entre outros profissionais da indústria criativa.
Produzir um conteúdo de qualidade é caro, mas os produtores não veem um retorno apropriado de seus investimentos. Por outro lado, as grandes plataformas usam esse conteúdo e geram bilhões de dólares com ele. Esse desequilíbrio precisa ser corrigido se queremos sustentar uma imprensa livre e independente.
WOUT VAN WIJK
Diretor-executivo da News Media Europe
Em um post publicado no blog oficial do Google francês, em 25 de setembro deste ano, Richard Gingras, vice-presidente do Google Notícias, afirmou que, em decorrência da decisão da UE, a companhia fará "alterações na maneira como os resultados das notícias aparecerão".
Quando a busca por um assunto é feita no segmento de notícias do Google, surge na tela a visão geral da reportagem, com linhas do texto e a imagem, correspondente ao artigo, em miniatura. Gingras explicou que, quando a lei francesa entrar em vigor, isso mudará naquele país:
— Não exibiremos mais uma visão geral do conteúdo na França, incluindo os editores de imprensa europeus, a menos que o editor tenha tomado as providências para indicar que esse é o seu desejo. Esse será o caso dos resultados de pesquisa de todos os serviços do Google.
Andrea Fornes, diretora de parcerias de produtos para América Latina do Google, afirma que a companhia "irá cumprir a lei na França e onde quer que ela seja aprovada".
— Damos a opção aos publishers de escolher o quanto de informação eles querem revelar em nosso buscador ao usuário. Nossa relação com os editores não é uma transação comercial, prezamos a relevância do conteúdo e quem define isso são nossos algoritmos. Se pagarmos para as empresas, abalamos a credibilidade do nosso produto como buscador — diz Fornes, que ressaltou ainda que a mudança afetará 22 mil editores europeus.
Pontos polêmicos da diretiva
Quando aprovada, a diretriz foi celebrada por parte da comunidade europeia, mas duramente criticada por ativistas da internet e alguns políticos. Julia Reda, membro do parlamento alemão, escreveu em sua conta no Twitter que era "um dia sombrio para a liberdade na internet".
Dois artigos da diretiva causaram maior furor no velho continente. O primeiro é o artigo 15, conhecido como "imposto de link", que protege conteúdo jornalístico. Ele prevê o pagamento aos veículos de comunicação pelo uso de seus conteúdos ou a interrupção de uso gratuito do conteúdo, na ausência de licença.
Contudo, no texto final da regra, ficou definido que ela não é válida para hiperlinks, uso de palavras individuais ou extratos muito curtos de uma publicação. Enciclopédias, como a Wikipedia, e organizações sem fins lucrativos poderão usar essas informações para fins educacionais e de pesquisa. Além disso, startups e empresas com faturamento anual inferior a 10 milhões de euros também estarão isentas de arcar com qualquer custo ao titular do direito autoral.
Com a difusão das plataformas digitais, os conteúdos passaram a ser replicados para a venda de publicidade e foi esvaziada a capacidade de remuneração dos materiais. É uma devastação da produção intelectual dos países. Com a justa valorização da capacidade intelectual por parte das gigantes, poderemos retomar a produção de informação original local e isso é importante para a comunidade se refletir e evitar o processo de corrosão social e democrática.
MARCELO RECH
Presidente da ANJ
O artigo 17 exige que as plataformas adotem medidas de reconhecimento de conteúdos protegidos, com o objetivo de evitar que o material seja publicado por usuários. Este tópico preocupou os internautas, em um primeiro momento, porque eles temiam que não seria permitida a criação de memes ou paródias a partir de conteúdos de terceiros. Porém, a redação deste artigo foi atualizada a fim de garantir este direito, explica Sydney Sanches, presidente da Comissão Especial de Direitos Autorais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB):
— Foi preciso encontrar um equilíbrio entre livre circulação de materiais e proteção. Isso foi um desafio, mas a diretiva excepcionou as paródias como conteúdo de livre distribuição e sem remuneração. O usuário poderá postar vídeos cantando a música de um artista, por exemplo. Caso o conteúdo viralize e comece a gerar renda, a plataforma usada para hospedar material pode vir a ser cobrada pelo titular do direito autoral.
Repercussão
Este primeiro passo dado pela França altera as regras do jogo, acredita Wijk, da News Media Europe. Para ele, o conjunto de novas regras reconhece o valor do conteúdo criativo e profissional e dá segurança jurídica para toda e qualquer empresa ou pessoa que queira construir negócio com base nesta matéria-prima.
— Acredito que a medida vá corrigir o desequilíbrio existente no ecossistema online mundial que, atualmente, permite que o Vale do Silício absorva a maioria dos lucros com pouca responsabilidade. Portanto, a consequência para o Google e o Facebook é entrar em uma cadeia de valor sustentável da internet — afirma o diretor-executivo da News Media Europe.
O presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech, ressalta que a América Latina ensaia o estudo de leis que visam à proteção dos direitos dos autores dentro do contexto contemporâneo. Ele afirma que a mudança que entrará em vigor na França auxiliará a acabar com os chamados "desertos de notícias", ou seja, bolsões de cidades sem produção de conteúdo local.
— Com a difusão das plataformas digitais, os conteúdos passaram a ser replicados para a venda de publicidade e foi esvaziada a capacidade de remuneração dos materiais. É uma devastação da produção intelectual dos países. Com a justa valorização da capacidade intelectual por parte das gigantes, poderemos retomar a produção de informação original local e isso é importante para a comunidade se refletir e evitar o processo de corrosão social e democrática — observa.
O presidente da Comissão Especial de Direitos Autorais da OAB, Sydney Sanches, faz coro à afirmação e crê que a América Latina comece a dar seus primeiros passos em direção a essas novas regras em relação à proteção da propriedade intelectual. Segundo ele, a lei n° 9.610, de 1998, trata sobre este tema, mas requer atualização:
— Nossa legislação precisa avançar na proteção no que tange ao âmbito digital. Temos leis mais voltadas para o período analógico. A indústria fonográfica, por exemplo, foi reinventada e encontrou modelos de negócio que conseguem remunerar artistas. Esse movimento precisa chegar a outros atores da indústria criativa.
Entenda a reportagem:
- Digital Single Market foi aprovada por 19 países da União Europeia em abril deste ano.
- Ela entra em vigor hoje na França, primeiro país europeu a aplicar a lei. Os demais países têm até dois anos para implementá-la.
- Com a novidade, as plataformas digitais terão de garantir que o conteúdo exibido não viole regras de direitos autorais. Ou seja, precisarão de acordos de licenciamento com seus donos.
- Um dos principais pontos do conjunto de leis diz respeito ao uso de notícias.
- Caso o dono do direito autoral não tenha cedido o uso do conteúdo e ele seja exibido em uma plataforma, a empresa hospedeira terá de remunerar os editores.
- Empresas com faturamento anual inferior a 10 milhões de euros estão isentas de qualquer custo na exibição.
- Organizações sem fins lucrativos e enciclopédias também poderão usar estas informações para fins educacionais e de pesquisa sem cobrança.