A multa de US$ 5 bilhões (cerca de R$ 19,1 bilhões) imposta ao Facebook como parte do acordo entre a gigante de tecnologia e as autoridades dos Estados Unidos ganhou manchetes mundo afora como uma lição exemplar para a companhia acusada de ter violado a privacidade de 87 milhões de pessoas. Mas, na prática, o valor representa pouco para a empresa: o equivalente a seis meses de lucro — em apenas três meses, por exemplo, entre abril e junho deste ano, foi de US$ 2,6 bilhões (em torno de R$ 9,9 bilhões). No mesmo período, a companhia faturou US$ 16,8 bilhões (R$ 64,1 bilhões).
Estes resultados foram divulgados um dia depois do anúncio do acordo, como se a companhia respirasse aliviada após meses de investigação que expuseram o lado sombrio da rede social.
Ou seja, embora o montante proposto para o acordo, que ainda precisa ser aprovado por um juiz federal nos Estados Unidos, pareça inalcançável para a maioria de nós, usuários, para o dono do Facebook, Mark Zuckerberg, faz pouca diferença.
Advogados especializados em direito do consumidor, grupos de defesa da privacidade na internet e congressistas norte-americanos consideram a ação, comemorada pela Comissão Federal do Comércio (FTC, órgão de regulação da concorrência nos EUA) como "sem precedente", um fracasso histórico: pouco eficaz, ineficiente, nada pedagógica ou, nas palavras de um senador americano, "sweetheart deal" (algo como um acordo generoso) foram algumas das expressões usadas para criticar a decisão. Uma das vozes mais ferozes partiu de dentro da própria FTC.
O comissário (cargo semelhante no Brasil ao de conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade) Rohit Chopra publicou um documento de 21 páginas no qual expõe suas críticas ao acerto — veja a íntegra neste link: "O acordo não impõe mudanças significativas na estrutura da empresa ou nos incentivos financeiros, que conduziram a essas violações. Nem inclui quaisquer restrições às táticas de vigilância em massa ou publicidade da empresa", diz o comissário no texto.
Sobre o valor da multa, ele afirma ser altamente provável que o "enriquecimento sem causa" do Facebook, feito como resultado da coleta proibida de dados do usuário na qual ele se envolveu, seja de mais de US$ 5 bilhões: "Quebrar a lei tem que ser mais arriscado do que segui-la", defende. E acrescenta que as práticas ilegais eram "ferramentas para fazer avançar o domínio da publicidade digital da empresa". "Os comissários que apoiam este acordo não mencionam análise do enriquecimento sem justificativa do Facebook para justificar o pagamento proposto de US$ 5 bilhões."
Se não podemos confiar a informação privada dos Estados Unidos ao Facebook, por que deveríamos confiar nosso dinheiro?
ED MARKEY
Senador norte-americano do Partido Democrata
No colegiado do FTC, o placar favorável ao acordo e ao valor da multa foi de 3 a 2. Além de Chopra, o voto dissidente foi da comissária Rebecca Kelly Slaughter, que também criticou a decisão: "O fato de o valor das ações do Facebook ter aumentado com a divulgação de uma penalidade potencial de US$ 5 bilhões pode sugerir que o mercado acredita que uma penalidade neste nível torna a violação lucrativa".
Segurança
Uma preocupação é o fato de o acordo ser ineficaz, na visão dos críticos, para mudar o modelo de negócios ou as práticas do Facebook. Em outras palavras, não garante que os dados dos usuários estão seguros: "O acordo não impõe mudanças significativas na estrutura da empresa ou nos incentivos financeiros, que conduziram a essas violações. Nem inclui quaisquer restrições às táticas de vigilância em massa ou publicidade da empresa", acrescenta Chopra.
Um dos indicativos de que o valor da multa não tirou o sono de Zuckerberg foi a movimentação na bolsa de valores Nasdaq. Após a divulgação do acerto, as ações do Facebook encerraram o dia 24 de julho em alta de 1,1% — a empresa está avaliada em US$ 584,2 bilhões. Tudo indica que a companhia também estava preparada para um desfecho "favorável". Havia contingenciado, por exemplo, US$ 3 bilhões para o pagamento à FTC.
Como pano de fundo do racha no órgão responsável pela fiscalização das práticas de concorrência nos Estados Unidos também está a polarização política em tempos pré-eleição. Chopra e Rebecca, os dois autores dos votos dissidentes, são ligados ao Partido Democrata, que tem feito do caso Facebook uma de suas bandeiras na guerra contra o presidente republicano Donald Trump, já em campanha pela reeleição em 2020. O vazamento de dados dos usuários do Facebook para a consultoria Cambridge Analytica teria favorecido Trump nas eleições de 2016. Também senadores da legenda expuseram suas críticas à suposta fragilidade do acordo.
— Se não podemos confiar a informação privada dos Estados Unidos ao Facebook, por que deveríamos confiar nosso dinheiro? — questionou o democrata Ed Markey, referindo-se à intenção da empresa de lançar uma moeda digital, a libra.
A investigação sobre o Facebook é mais do que apenas uma questão de defesa da privacidade dos usuários. Segundo os críticos, perdeu-se uma oportunidade de limitar o poder da empresa de manipular informações sensíveis de usuários ou usá-las para direcionar publicidade. O acordo evita que a FTC entre com ação contra o Facebook na Justiça norte-americana.
O advogado brasileiro Rodrigo Zingales, especialista em direito da concorrência, considera que o valor da multa deve ser relativizado.
— Se avaliarmos o último ano de faturamento do Facebook, a multa é alta, mas se pegarmos o faturamento dos últimos 10 anos, é baixa. Se, cada vez que a empresa faz isso (comete uma infração), levar três ou quatro anos para ser multada... No caso do Google, a investigação por práticas desleais em relação à concorrência, levou oito anos. Nesse período, eles acabaram com o mercado. Ou seja, geraram uma série de vantagens econômicas durante oito anos em que a conduta continuou — pondera.
Sinal amarelo para Google e Facebook
Também no Brasil as autoridades de defesa da concorrência olham com lupa Facebook e Google. Para o ex-conselheiro do Cade Arthur Barrionuevo, o valor da multa, embora possa parecer pequeno para os padrões financeiros das gigantes de tecnologia, acende um sinal amarelo para elas.
— Se você pensar só no impacto financeiro da multa, não é alto. Mas o Facebook vai interpretar essa multa como resultado de que tanto sociedade quanto autoridades estão olhando para esse tipo de conduta de maneira menos favorável. Vão repensar suas práticas, mas o quanto vão mudar e a velocidade com que vão mudar, não se sabe — analisa Barrionuevo, que também é professor de Economia da Fundação Getulio Vargas.
Em comunicado assinado pelo advogado Colin Stretch, o Facebook disse que o acordo "vai exigir mudança fundamental na forma como aborda o trabalho e colocar responsabilidade adicional sobre as pessoas que constroem seus produtos em todos os níveis da empresa". Também anunciou "uma virada aguda em direção à privacidade, numa escala diferente de qualquer coisa que fizemos no passado". Foi criado um comitê no Conselho de Diretores que se reunirá a cada três meses para analisar se os compromissos firmados estão sendo cumpridos. A empresa também se comprometeu a revisar todo o seu sistema, em busca de possíveis problemas.