Na porta verde de ferro que dá acesso à casa onde Kerollyn Souza Ferreira, nove anos, vivia em Guaíba, na Região Metropolitana, agora há dois cartazes. Em um deles, está o questionamento “Cadê o Conselho Tutelar?” e, no outro, “Queremos Justiça”. Era ali que a criança morava com a mãe, Carla Carolina Abreu Souza, 29 anos, e os irmãos, até ser encontrada morta dentro de um contêiner de lixo. A mulher foi presa e é investigada por homicídio.
As frases na fachada da moradia representam o sentimento dos moradores do bairro Cohab Santa Rita. Era pelas ruas da comunidade periférica que a garota costumava circular de bicicleta. Ia de vizinho em vizinho, e muitas vezes era preciso ordenar que ela retornasse para casa. Kerollyn fazia a volta na escola e prolongava o regresso.
No dia 9 de agosto, a menina teve o corpo encontrado dentro do contêiner, que ficava a 32 passos da casa onde morava. A Polícia Civil passou a investigar o caso e prendeu a mãe como suspeita da morte da filha. A defesa afirma que a mãe não tem ligação com a morte da menina.
Na comunidade, os moradores realizaram o protesto para pedir justiça, mas também para cobrar a atuação do Conselho Tutelar do município no caso.
— Todo mundo chamava o Conselho Tutelar. Não foi uma nem duas vezes. Foram muitas vezes. A mãe dela até ameaçava ela dizendo que o Conselho ia levar ela — conta uma das vizinhas, sobre os relatos de que Kerollyn passava fome, era agredida e negligenciada pela mãe.
Na tarde deste sábado (24), os moradores caminharam pelas ruas do bairro levando os cartazes e balões brancos, enquanto gritavam "Justiça". Na praça onde foi encontrado o corpo da menina também foi fixado um cartaz com fotos dela, e a mensagem: "Kerollyn não foi a primeira, mas vamos lutar para que seja a última". No mesmo local, moradores depositaram ramos de flores e acenderam velas.
Era também nessa praça que a criança costumava brincar e, segundo moradores, abrigava-se dentro de um veículo abandonado. A última vez em que Kerollyn foi vista pelos vizinhos foi na noite de 8 de agosto. A menina estava preocupada por ter perdido algo, e bateu de porta em porta, pedindo uma vela ou uma lanterna. Na manhã seguinte, um reciclador encontrou o corpo dela dentro do contêiner de lixo.
— O povo está querendo justiça — diz outra moradora, que costumava receber a menina em casa, onde ela almoçava rotineiramente.
Segundo a vizinha, a menina tinha o hábito de aparecer no horário do meio-dia, pois era alimentada pela mãe somente com produtos industrializados, como salgadinhos e bolachas. Kerollyn costumava relatar aos vizinhos que era agredida pela mãe e chegou a apresentar um ferimento na cabeça, que teria sido provocado por um golpe com uma escumadeira.
Os mesmos relatos foram feitos pela menina na escola onde estudava, segundo depoimentos de professoras à polícia. Na tarde do dia 8, a aluna teria relatado na orientação da instituição que dois arranhões no rosto tinham sido provocados pela mãe, quando lhe batia.
Causa da morte ainda é mistério
Após ouvir os relatos sobre a situação na qual viveria a menina, a Polícia Civil chegou a pedir a prisão preventiva da mãe pelo crime de tortura. No entanto, o Ministério Público entendeu que havia elementos suficientes para solicitar a prisão temporária da mulher por suspeita de homicídio. Carla segue presa e é investigada.
Alguns pontos ainda devem ser esclarecidos pela investigação da Polícia Civil, como a causa da morte da menina e de que forma o corpo dela foi depositado dentro do contêiner de lixo. Os policiais chegaram a verificar imagens da câmera de segurança de uma escola próxima, no entanto, o equipamento não teria registrado o momento em que o corpo dela é deixado no local.
Uma das hipóteses investigadas é a de que a criança tenha morrido em razão da ingestão de um sedativo. Carla admitiu, segundo a Polícia Civil, ter administrado meio comprimido de clonazepam na filha. A menina não teria prescrição médica para esse medicamento.
A mulher alegou, no entanto, que a criança desapareceu durante a madrugada e que ela só percebeu isso ao amanhecer. Após constatar que a filha não estava em casa, Carla teria tomado uma medicação e voltado a dormir. Ela foi acordada pelos policiais depois das 7h, quando o corpo de Kerollyn já havia sido encontrado no contêiner de lixo.
Na última quarta-feira (21), a Polícia Civil e o Instituto-Geral de Perícias (IGP) pretendiam divulgar em coletiva à imprensa os resultados dos laudos periciais do caso. A expectativa era de que eles ajudassem a compreender a causa da morte. No entanto, uma decisão judicial elevou o grau de sigilo do caso, com intuito de não atrapalhar o andamento das investigações. Em razão disso, a coletiva foi cancelada e os exames não foram divulgados.
O que diz o Conselho Tutelar
Em entrevista a Zero Hora e Rádio Gaúcha, o Conselho Tutelar de Guaíba afirmou que nunca recebeu relatos de que Kerollyn sofria maus-tratos por parte da mãe.
Duas conselheiras ouvidas pela reportagem admitiram que receberam diversas denúncias afirmando que a criança costumava perambular pelas ruas e que pedia comida na vizinhança, no entanto, alegam que nenhuma dessas situações chegou a ser constatada durante as verificações.
— As denúncias chegavam para nós de que as crianças estariam na rua. No momento em que nós chegávamos ao bairro, nos dirigíamos para ver essas crianças, elas já estavam ou em casa ou na escola. Todas as vezes que fomos acionados ocorreu esse fator: ou estavam na escola ou estavam em casa — afirmou uma das conselheiras responsáveis pelo atendimento à família, Andréa Rodrigues.
O que diz a defesa de Carla
A defesa de Carla Carolina Abreu Souza, 29 anos, manifestou-se sobre o assunto pela primeira vez na sexta-feira (23). Os advogados Thais Constantin e Welynton Noroefé Domingues, que assumiram a representação na quarta (21), afirmam que vão buscar elementos para provar que a mãe não tem ligação direta ou indireta com a morte. Também sustentam que a prisão foi precipitada.
— O que eu posso afirmar, nesse momento, é que ela foi ouvida sem a presença de um defensor. O que compromete bastante todas alegações que ela possa ter prestado perante a polícia. Não sabemos em que contexto ela foi ouvida, porque não havia defensor acompanhando esse ato. Então, a partir do acesso que tenhamos aos autos, vamos conseguir passar posicionamento melhor — afirmou Thais.
A advogada afirma que ainda busca acesso integral aos autos da investigação. A defesa afirma que também não teve acesso aos laudos periciais.
— Nos surpreende porque esses laudos não estão dentro do que nos foi liberado. Nós também estamos aguardando e, para nós, é crucial que ele apareça o quanto antes. No nosso entendimento, ele vai elucidar muita coisa do que estamos tentando e ouvimos da própria Carla — completou a advogada.