A enchente que devastou o Rio Grande do Sul no final de abril e em maio deste ano deixou 175 mortos, segundo o mais recente boletim da Defesa Civil, divulgado na segunda-feira (10). Outras 38 pessoas continuam desaparecidas. Apenas dois corpos ainda não foram identificados, os últimos a serem resgatados, nas cidades de Teutônia, no Vale do Taquari, e Santa Maria, na Região Central.
Durante a cheia, policiais civis, militares, bombeiros e voluntários enfrentaram o mau tempo para resgatar os sobreviventes e recuperar os corpos das vítimas. Na outra ponta desse trabalho, equipes do Instituto-Geral de Perícias (IGP) receberam reforços da Força Nacional para agilizar a identificação dos corpos localizados.
Em Porto Alegre, o Departamento Médico-Legal atende demandas de toda a Região Metropolitana e, quando necessário, de outras localidades. Segundo a perita criminal da área de odontologia, Rosane Pérez Baldasso, coordenadora-geral da Comissão Permanente de Identificação de Vítimas de Desastres em Massa, os protocolos internacionais de atendimento para situações de desastres ambientais que foram adotados, conhecidos como DVI (Disaster Victim Identification), são diferentes do procedimento habitual.
Ela explica que nesses casos as equipes especializadas trabalham de forma simultânea com três métodos diferentes: papiloscopia (identificação pelas impressões digitais), odontologia legal e genética forense (exame de DNA).
Fluxo da perícia
Ao chegar no DML para a necropsia, o corpo é atendido por uma equipe multidisciplinar composta por um médico legista, um técnico em perícias, um fotógrafo criminalístico, um papiloscopista e um perito criminal da área de odontologia. Cada corpo é analisado por um grupo diferente. O objetivo é garantir a celeridade do processo.
Rosane comenta que, no ápice da enchente, o máximo de corpos analisado simultaneamente no local chegou a oito. Segundo ela, o tempo para a identificação varia de caso a caso e depende de dois fatores: o estado de conservação do cadáver e a quantidade de dados disponíveis para comparação.
— Todo o processo de identificação é um processo de comparação. O papiloscopista busca entre as impressões digitais disponíveis no sistema do registro civil a identidade daquele indivíduo. Na odontologia, não basta fazer um exame se não tiver com o que comparar, se um familiar não fornecer uma radiografia ou um prontuário médico odontológico. E assim também é o exame de DNA, que precisa de uma amostra de um familiar, de preferência filhos, ou do próprio indivíduo para fazer essa comparação. Sem isso, não se vai chegar a nenhuma identificação — sublinha a perita.
Em alguns casos, a perita explica que o exame de DNA não fornece uma informação precisa do grau de parentesco entre as pessoas, mas pode comprovar um vínculo familiar. Por isso, é preferível que o material genético seja fornecido por filhos. Quando não há a confirmação, o corpo é liberado para a família com a nomenclatura de “desconhecido”, com a observação de que há parentesco com o ente reclamante.
Há um prazo de 30 dias para o armazenamento desse corpo pelo DML quando não há a identificação. Passado esse período, o corpo é sepultado em um cemitério credenciado pelo Estado como “desconhecido”. No entanto, os dados da necropsia ficam disponíveis em um banco de perfil genético para que, caso alguém procure por aquela pessoa em algum momento, ela possa ser identificada e até mesmo exumada para sepultamento em um jazigo familiar.
A perita chama atenção para o uso do termo correto, que é desconhecido e não indigente, palavra que ela reitera ter caído em desuso.
Papiloscopia é o método mais ágil
Mais da metade das identificações das vítimas da enchente é por meio de papiloscopia. Na sede do Departamento de Identificação do IGP em Porto Alegre, na Avenida Azenha, as papiloscopistas Lizandréia Brombatti e Cíntia Meyer Pompermayer são responsáveis pelas análises.
Lizandréia pontua que quando o corpo chega para análise logo após a morte é mais rápido para fazer o exame das digitais. Em alguns casos, a identificação é entregue para a família no mesmo turno. Em outros, pode levar semanas. Durante o período da cheia, as peritas recebiam somente as falanges distais, que são as pontas dos dedos, para análise.
A ponta do dedo é cuidadosamente pressionada sobre uma tinta escura e colocada sobre uma lâmina transparente, que será usada para a comparação em um banco de dados nacional.
Um software cruza dados, faz comparações e reduz o número de possibilidades, mas a análise final é feita por um papiloscopista. As informações também são encaminhadas para o banco de dados para caso alguém aparecer posteriormente em busca daquela pessoa.
Quando são localizados documentos junto ao corpo — o que não significa que pertençam àquela pessoa — o IGP tenta contato com familiares para coletar informações como peso, altura, cor do cabelo, se usava aparelho ortodôntico, se tinha tatuagens.
Há uma central telefônica funcionando 24 horas por dia prestando esse atendimento e esclarecendo dúvidas por ligação ou WhatsApp. O número é (51) 98682-9207.
Em outros casos, familiares que já registraram o desaparecimento junto à polícia procuram a sede do IGP para fornecer material genético para comparação. A coleta via swab (cotonete) ou amostra sanguínea é feita no posto do DML, na Avenida Ipiranga, 1.807.
99% de efetividade
Dos 175 mortos contabilizados pela Defesa Civil, 29 casos registrados no início das cheias, em cidades do Interior que ficaram isoladas, não puderam passar por perícia. Rosane Pérez explica que não havia como transportar esses corpos em razão dos bloqueios nas estradas e falta de infraestrutura.
Nesse caso, excepcionalmente, os corpos, que não estavam em estado de decomposição, foram identificados e liberados para as famílias por médicos das cidades, que também são aptos para fazê-lo, como é de praxe nos hospitais.
Os 146 corpos restantes passaram por necropsia, sendo que 99% deles já foram entregues às famílias. Os dois últimos a ser resgatados, que passaram a constar no boletim de Defesa Civil na segunda-feira, seguem aguardando pelo resultado da papiloscopia, pois estavam em avançado estado de decomposição.
Do total, 58 necropsias foram atendidas pelo DML de Porto Alegre e o restante, nos demais 34 postos médicos-legais do RS. Dez corpos já identificados ainda aguardam pela retirada das famílias.
Dados na cheia
- 175 óbitos registrados no RS
- 146 necropsias em todo o Estado (destes, 58 atendidos no DML Porto Alegre)
- 144 identificados
- 2 em processo de identificação (últimos localizados em Teutônia e Santa Maria)
- 10 corpos identificados a serem retirados pelas famílias, já comunicadas pela Assistência Social
Reconhecimento x identificação
Rosane Pérez explica que há diferença significativa entre reconhecimento e identificação. Ela pontua que há ideia de que as pessoas que procuram por familiares desaparecidos podem ir até o IGP e identificar o corpo apenas olhando, como ocorre em seriados de TV. Segundo ela, se o familiar fizer questão de ver o corpo, será permitido, mas esse reconhecimento não é válido para fins legais. O que vale é a identificação pericial.
Somos um órgão pericial composto por um quadro técnico-científico. Não seria aceitável liberar corpos por reconhecimento.
ROSANE PÉREZ BALDASSO
Perita criminal da área de odontologia do IGP.
— Reconhecer, como diz o nome, é conhecer de novo, alguém que você pode ter visto na rua e reconheceu. As pessoas mudam com o tempo. Familiares próximos à vítima podem reconhecê-la, mas reconhecer uma pessoa morta, ainda mais em avançado estado de decomposição, que é chocante, é muito diferente de reconhecer um vivo. As pessoas que estão em busca de respostas querem reconhecer. Somos um órgão pericial composto por um quadro técnico-científico. Não seria aceitável liberar corpos por reconhecimento — explica Rosane.
Fake news sobre corpos
Além das intempéries climáticas, as fake news também dificultaram os trabalhos de resgate e identificação das vítimas. Essas notícias falsas, em grande parte, buscavam induzir a população a crer que o Estado estaria ocultando o número de mortos.
Na semana de 17 de maio, circulava pelas redes sociais um vídeo com uma informação falsa de que havia 2 mil corpos armazenados em um frigoríficos de Canoas, na Região Metropolitana. No dia 17, contudo, havia 154 mortes confirmadas em todo o RS, sendo 21 em Canoas.
Dois dias antes, outra fake news dizia que houve superlotação de corpos no Posto Médico-Legal de Lajeado, no Vale do Taquari. A informação era falsa e foi desmentida pelo IGP.
Um áudio circulou por aplicativos de mensagens afirmando que cerca de 300 corpos foram encontrados durante a evacuação do bairro Mathias Velho, em Canoas, no final de semana dos dias 4 e 5. Na ocasião, o boletim da Defesa Civil — que era atualizado três vezes por dia — contava com 95 mortes em todo o Estado, sendo apenas três delas em Canoas.
Há risco de subnotificação de mortes?
Apesar do tempo despendido na guerra contra a desinformação, os órgãos de segurança trabalharam em conjunto para garantir a celeridade nos resgates e identificação de vítimas. Segundo o diretor do Departamento de Homicídios, delegado Mario Souza, o risco de ocorrer uma subnotificação das mortes é muito baixo. Ele salienta que todos os registros foram investigados.
— É muito difícil haver subnotificação porque é uma rede que envolve central de óbitos, perícia, polícia e cartório. As pessoas precisam da certidão de óbito para fazer transações bancárias, por exemplo. Tudo o que foi registrado está sendo investigado — sublinha o delegado.
Conforme Souza, a Delegacia de Investigação de Pessoas Desaparecidas (DPID) segue protocolos específicos para efetuar as buscas. Entenda:
- Os policiais entram em contato com os familiares do desaparecido
- Tentam contatar o próprio sumido
- Realizam buscas em sistemas de instituições financeiras
- Analisam imagens de câmeras de videomonitoramento
- Investigam a rotina da pessoa
- Realizam buscas pelas ruas e abrigos tentando localizar e desvendar últimos passos
É muito difícil haver subnotificação porque é uma rede que envolve central de óbitos, perícia, polícia e cartório.
DELEGADO MARIO SOUZA
Diretor do Departamento de Homicídios da Polícia Civil.
— O Estado quer saber sobre os registros de desaparecidos. Só não teve alguém registrado como desaparecido se a família não nos procurou. Ainda assim, o número foi muito abaixo do que o esperado — afirma o delegado.
Souza reitera a importância do registro do desaparecimento na Polícia Civil para que os órgãos de segurança possam fazer buscas e para que o IGP possa cruzar os dados destes registros com as evidências coletadas nos corpos.
O delegado orienta para que o registro seja feito o mais breve possível. Ele enfatiza que não existe prazo mínimo para o registro e diz que muitas pessoas acreditam que seja necessário esperar 24 horas, o que não é verdade.
Como registrar desaparecimentos
- Delegacia de Desaparecidos: Avenida Bento Gonçalves, 8.855, bairro Agronomia, na Cidade da Polícia, em Porto Alegre
- Horário: 8h30min às 12h e 13h30min às 18h, de segunda a sexta-feira. O registro do desaparecimento pode ser feito em qualquer horário nos plantões de delegacias e na Delegacia Online.
- Contato: 0800-642-0121 (24 horas) ou pelo WhatsApp no (51) 984167109 ou (51) 98444 0606.
- E-mail: dhpp-desaparecidos@pc.rs.gov.br
Onde procurar o IGP*
Porto Alegre
DML
- Endereço: Avenida Ipiranga, 1.807, no bairro Santana
- Horário: das 18h às 9h, de segunda a sexta-feira e 24 horas nos sábados e domingos
Cremers
- Endereço: Avenida Princesa Isabel, 921, no bairro Santana
- Horário: das 9h às 18h de segunda a sexta-feira
Canoas
Posto Médico Legal
- Endereço: Avenida Farroupilha 8.001, no bairro São José (subsolo do Hospital Ulbra)
- Horário: das 8h às 18h de segunda a sexta-feira
* Para coletas em outros locais, vá ao Posto Médico Legal mais próximo