Em depoimento à Polícia Civil, dois policiais envolvidos na abordagem a um motoboy negro no último sábado (17), em Porto Alegre, negaram que ter agido de forma racista e alegam que ele foi preso porque estaria com comportamento agressivo. Os dois PMs deram suas versões dos fatos na tarde desta terça-feira (20), na 3ª Delegacia de Polícia (DP) da Capital. Outros dois brigadianos ainda são ouvidos nesta tarde.
Os depoimentos dos PMs começaram às 14h, e cada um durou pouco mais de uma hora. Esses dois brigadianos, um homem e uma mulher, integravam a segunda guarnição que chegou ao local do fato no sábado — duas equipes atuaram na ocorrência.
Eles atuam como soldados na Brigada Militar. A mulher tem seis anos de corporação e o homem, cinco. Os dois são atendidos pela advogada Andrea Ferrari, que conversou com a reportagem.
Segundo a defesa, a abordagem no bairro Rio Branco não teve excessos e foi adequada. Naquele sábado, os brigadianos afirmam que foram deslocados para atender uma ocorrência de "lesão corporal mútua", diz Andrea.
O caso envolveu o motoboy Everton Henrique Goandete da Silva, 40 anos, que foi ferido com golpe de canivete por Sérgio Camargo Kupstaitis, 71. Já o agressor teria sido alvo de pedradas por parte de Silva.
— No local, um acusou o outro (de agressão), mas eles tiveram comportamentos diferentes com a BM. Então, o mais agressivo foi para a parede primeiro. Até por motivo de segurança. Quero ressaltar que os dois envolvidos foram conduzidos algemados e em viaturas. Quem tem de investigar o que aconteceu ali é a Polícia Civil. A Brigada Militar tem de conduzir as partes, e aquele que foi agressivo foi o primeiro a ser abordado — pontua a advogada.
Uma das críticas feitas à atuação da BM é que o motoboy ferido foi levado ao Palácio da Polícia preso no camburão, enquanto Kupstaitis foi sentado no banco traseiro de outra viatura.
Além disso, segundo testemunhas, Kupstaitis, que estava sem camisa, foi acompanhado por policiais até seu apartamento, na mesma rua do fato, para se vestir. Ali, também teria se desfeito do canivete usada para agredir o motoboy — o objeto usado foi entregue à Polícia Civil na segunda, quando o agressor prestou depoimento. Somente depois, ele teria sido algemado e colocado na viatura.
Andrea afirma que, quando os dois PMs que ela atende chegaram ao local do fato, Kupstaitis não tinha nenhum canivete consigo.
Possível racismo
Andrea também nega que o fato de o motoboy ser negro tenha influenciado a ação dos PMs. Para testemunhas da abordagem, a ação teve cunho racista.
— O que determinou a forma de condução da ocorrência foi o comportamento da parte (Silva). Em nenhum momento foi questionado, examinado ou falado em cor, raça ou credo das partes. De forma alguma a Brigada Militar pode fazer essa diferenciação.
Afastamento temporário
Os dois soldados atendidos pela advogada foram os PMs afastados temporariamente das atividades nas ruas até o fim das investigações. A medida foi tomada em razão do "estresse" causado aos policiais e também por "precaução", segundo a Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP-RS). A dupla vai atuar no setor administrativo da BM, até que o caso esteja esclarecido.
Segundo Andrea, os dois soldados estariam abalados com o caso e a repercussão.
— Estão bastante abalados. Imagina, do nada estão trabalhando, de forma correta, e de repente passam a ser réus ao olhares da sociedade. Lamento muito esse julgamento antecipado que estão fazendo. Com isso, eles perdem, mas a sociedade também — afirma a advogada.
BM também investiga
Nos próximos dias, os dois devem ser ouvidos também na sindicância aberta pela Brigada Militar, procedimento que apura a conduta dos PMs, inclusive o possível racismo. O secretário da Segurança Pública, Sandro Caron, afirmou que o procedimento deve ser concluído até o próximo sábado (24).
Testemunhas do caso foram ouvidas no procedimento. Na tarde de segunda-feira (19), o motoboy prestou depoimento à sindicância "na condição de vítima".
Entenda o caso
A investigação foi aberta após a divulgação de diversas fotos e vídeos que mostram um motoboy negro sendo algemado e conduzido pela Brigada Militar após ter sido vítima de uma facada desferida por um homem branco, no sábado (17), no bairro Rio Branco, em Porto Alegre. O motoboy e testemunhas alegam que os policiais trataram a vítima como criminosa — enquanto o suposto agressor seguia livre e era tratado com deferência pelos brigadianos.
Contrapontos
A reportagem tenta localizar Sérgio Camargo Kupstaitis, para contraponto, sem sucesso até a publicação dessa reportagem.
A defesa do motoboy Everton Henrique Goandete da Silva se manifestou por meio de nota:
"A defesa do motoboy Everton Goandete, patrocinada pelo criminalista Ramiro Goulart, manifesta consternação pela declaração da defesa dos policiais militares. E questiona como um cidadão deveria reagir após levar uma facada no pescoço. 'O que a defesa dos representantes da Brigada Militar chama de agressividade foi a reação de um homem que estava trabalhando e quase perdeu a vida por um motivo torpe', explica.
Em relação à arma branca usada para atacar o motoboy, o criminalista responsável ressalta que os protocolos utilizados pelos agentes públicos permitiram que o agressor se livrasse da arma que deveria ter sido apreendida e periciada.
O advogado também afirma que 'não permitiremos que o óbvio seja negado pelas Instituições e nem pelo Estado do Rio Grande do Sul. Houve uma tentativa de homicídio contra um homem negro e isso não será reduzido a uma briga de vizinhos. Assim como houve uma abordagem truculenta, abusiva e racista por parte da Brigada Militar quando foi chamada para atender a ocorrência', enfatiza.
Por fim, o defensor salienta que as imagens dos prédios e estabelecimentos comerciais que estão com a Polícia Civil podem esclarecer os fatos com honestidade à população brasileira que acompanha apreensiva o desdobramento desse caso."