A nova penitenciária de Charqueadas completa uma semana de funcionamento, nesta segunda-feira (4), sob críticas. No espaço, que foi prometido pelo governo do Estado como ganho ao sistema carcerário gaúcho, apenados relatam que vêm recebendo comida estragada e que não há alternativa para o forte calor visto no RS nos últimos dias. Higiene precária e supostas agressões também permeiam as falas dos primeiros presos da Penitenciária Estadual de Charqueadas (PEC) II.
Para verificar o cenário, autoridades fizeram uma visita à cadeia na manhã desta segunda. Conforme o Tribunal de Justiça (TJRS), as reclamações serão verificadas, em um trabalho que envolve também outras instituições gaúchas e, se confirmadas, os responsáveis serão cobrados.
Participaram da vistoria integrantes do Tribunal de Justiça (TJRS), do Ministério Público (MPRS) e da Defensoria Pública (DPERS), junto do titular da Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo (SSPS), Luiz Henrique Viana.
A reportagem também esteve na unidade nesta manhã, mas não foi autorizada pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) a visitar as instalações. O órgão é responsável pela administração das casas prisionais gaúchas, e responde à SSPS.
A secretaria se manifestou por meio de nota, afirmando que o funcionamento da unidade ocorre "dentro da normalidade e sem nenhuma alteração" (confira o posicionamento completo abaixo).
Atualmente, 630 presos já ocupam a nova casa prisional, que tem capacidade para até 1.650 apenados e ocupa área de cerca de 23,2 mil metros quadrados. A solenidade de inauguração ocorreu há uma semana, no dia 27 de novembro. As obras duraram cerca de um ano e meio, e tiveram investimento de cerca de R$ 185 milhões. Por "questões de segurança", o governo não divulga o número de agentes trabalhando na unidade.
Imagens feitas nesta segunda por autoridades mostram as dependências da unidade com acúmulo de lixo. Segundo o relato de apenados, não foram fornecidos sacos para colocar o lixo dentro das celas. Assim, eles têm jogado restos de comida, como cascas de frutas, para fora das janelas, onde fica a parte hidráulica.
— Essa sujeira é porque não nos forneceram sacos de lixo e nenhum tipo de assistência para ter uma higiene mínima dentro das celas. Então, em vez de socar no vaso, para entupir, foi tocado para fora (da cela), infelizmente. Os banheiros do pátio também já estão entupidos de comida, fedendo. E ainda querem que a gente almoce lá — disse um apenado em material gravado nesta segunda, obtido pela reportagem.
Em uma sala onde visitantes aguardam sua vez, nos dias em que é possível ver os apenados, a reportagem encontrou sujeira. No chão e nos bancos, havia sacolas e garrafas pet deixadas. Nos banheiros, papeis higiênicos usados caídos no chão ou formando pilhas nas lixeiras. Alguns canos e um tampo de uma caixa de descarga também estavam jogados pelo chão.
Comida estragada e falta de tomadas
Outra reclamação de apenados é sobre a comida servida no local, com relatos de refeições e frutas que estariam estragadas.
Conforme o TJ, todos os apenados que estão na PEC II foram trazidos da penitenciária de Canoas, que oferece atividades laborais junto a empresas, o que permite remuneração mensal e remição de pena. Alguns desses, que estavam empregados em Canoas, foram transferidos à nova casa em Charqueadas, que não oferece esse tipo de tarefa até o momento, segundo a juíza Sonali da Cruz Zluhan. A magistrada atende alguns dos presos da nova unidade e participou da visita nesta segunda.
— Muitos presos reclamaram que estavam trabalhando em Canoas e perderam o emprego com a transferência, dizem que não foram consultados. Foram despejados aqui e não aconteceu nada, está desorganizado. Os apenados ficam dentro das celas, sem fazer nada, ou no pátio — pontua a juíza.
Durante a visita, a reportagem conseguiu trocar mensagens com a magistrada, que estava dentro da unidade, o que mostra que há sinal na nova penitenciária.
A juíza Priscila Gomes Palmeiro, responsável pela fiscalização da penitenciária, também esteve no local nesta segunda e conversou individualmente com presos. Segundo ela, uma das principais queixas foi o calor na unidade.
— Eles afirmam que é muito quente dentro das celas, e piora por não ter tomadas para ventiladores. Dizem que tem muito mosquito, principalmente à noite, por falta de ventilação. É algo insustentável o calor, pelo que afirmam. Além disso, no local onde os familiares ficam, no dia de visita, o telhado tem partes de alumínio, o que acaba esquentando mais. Muitos visitantes não conseguem ficar ali, segundo os apenados — diz Priscila.
A juíza Sonali criticou a falta de tomadas dentro das celas, que também faz com que os presos não possam assistir TV nem ouvir rádio.
— É a falência total do Estado. Eles não conseguem bloquear sinal nem evitar que o celular entre (na cadeia), aí tiram as tomadas. Imagina o calor, eles estão enlouquecidos lá dentro. Teve familiar ontem (domingo), na visita, desmaiando por causa do calor.
Supostas agressões
A juíza Priscila afirma que recebeu, ao longo da primeira semana de funcionamento da casa, diversas denúncias de possíveis violações de direitos. Algumas dão conta de agressões a presos.
Outra afirmação trazida por presos é que integrantes de grupos criminosos rivais teriam sido colocados nas mesmas galerias. Ao menos uma briga entre detentos teria ocorrido ao longo da semana, em razão disso.
— Foi uma situação pontual, que envolveu poucos presos. Em relação à agressão por parte de agentes, também tivemos relatos, que estão sendo investigados. O que vemos é que a unidade está com a estrutura pronta, mas que o funcionamento precisa ser melhorado. Há presos que antes estavam trabalhando, e que agora não têm mais a atividade. Os apenados ali ficam o tempo todo na cela, ou vão para o pátio. Precisam de alternativas — avalia Priscila.
A juíza ressalta que as informações obtidas se baseiam em relatos de presos, e que serão verificadas e investigadas, o que envolve outras instituições, como MP, Susepe e governo do Estado. Um expediente que trata da questão já foi aberto pelo TJ.
Casa opera "dentro da normalidade", diz governo
Procuradas pela reportagem, a Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo e a Susepe se manifestaram por meio de nota. As pastas afirmam que a PEC II "encontra-se com o seu funcionamento dentro da normalidade e sem nenhuma alteração", e "conta com uma estrutura qualificada, concebida a partir de materiais de maior eficiência térmica quando comparado aos prédios de método construtivo tradicional".
O texto destaca que a penitenciária é a mais moderna e eficiente do Estado, e que a ausência de tomadas e de energia elétrica nas celas "é uma diretriz de enfrentamento ao crime organizado".
Confira a nota na íntegra:
"A Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo (SSPS) e a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) informam que a Penitenciária Estadual de Charqueadas II (PEC II), recentemente inaugurada, encontra-se com o seu funcionamento dentro da normalidade e sem nenhuma alteração.
A nova unidade prisional conta com uma estrutura qualificada, concebida a partir de materiais de maior eficiência térmica quando comparado aos prédios de método construtivo tradicional.
Cabe ressaltar também que a PEC II é o presídio mais moderno e eficiente do Estado, tendo sido projetado para receber oficinas de trabalho e garantir o acesso à educação, com 24 salas de aula. Além disso, as pessoas privadas de liberdade possuem acesso à televisão, com supervisão da equipe técnica, durante o pátio de sol. A unidade possui totem de água gelada e sistema central de aquecimento de água.
Ressaltamos que a ausência de tomadas e de energia elétrica nas celas é uma diretriz de enfrentamento ao crime organizado, impedindo o acesso a celulares e aparelhos eletrônicos que possam facilitar a comunicação com o mundo externo, impedindo a prática continuada de crimes.
Importante destacar que tudo transcorre dentro da normalidade esperada de uma penitenciária com essas características e que a presença dos grupos táticos faz parte do protocolo de abertura das casas prisionais, garantindo a prontidão para atuarem caso seja necessário.
Por fim, informamos que todas as pessoas privadas de liberdade transferidas para a PEC II foram informadas sobre o processo e que a Susepe está atenta às demandas e analisará os casos de forma individual e com foco na garantia do bom andamento das atividades do sistema prisional e melhor adaptação das pessoas privadas de liberdade."