As organizações criminosas utilizam as mercadorias vendidas por cantinas nas penitenciárias e presídios gaúchos para aumentar seu poder financeiro. As facções não participam das licitações para exploração dos estabelecimentos, mas ganham dinheiro com os produtos que deveriam ser negociados diretamente para presos e familiares deles. Os itens são comprados nos estabelecimentos legalizados, instalados nas prisões por meio de licitação, e repassados, a preços mais altos, para membros dos grupos.
Alguns exemplos: um refrigerante de dois litros que sai de algumas cantinas oficiais por R$ 18 (valor bem acima dos R$ 9 praticados na rua) pode ser revendido por R$ 25 ou mais dentro das galerias.
A divisão de combos gera ainda mais ganho às organizações. Há prisões em que as cantinas oficiais preparam kits para enviar aos detentos. O de produtos variados, com bolachas, chocolates e cigarro, entre outros itens, é vendido por R$ 600. Na galeria, as mercadorias ganham preços unitários e sobrepreço. Cada chocolate pode custar R$ 15 nas alas dominadas por facções. Assim, os criminosos recuperam o custo do kit e chegam a lucrar R$ 400.
Outro exemplo é o pacote para sanduíches, que pode render até 60 lanches. Ele custa R$ 400, mas, com a revenda unitária feita pelas facções, cada lanche sai por R$ 15, rendendo R$ 900.
Tudo funciona às claras: em uma prisão com mais de mil detentos, por exemplo, não há logística de segurança para que cada um se dirija à cantina. Cada galeria envia ao mercado oficial um preso de confiança com as encomendas dos demais. As mercadorias são levadas em carrinhos para uma cela que funciona como uma "subcantina". Ali, os preços são ditados pela facção dominante.
Também há prisões em que o produto nem chega a ir para o espaço de uma cantina oficial. Os mantimentos são descarregados dos caminhões e já são entregues aos representantes de galerias.
Até açaí
São os líderes de facções que controlam o comércio informal. Neste cenário, quanto mais as cantinas venderem, melhor para os negócios informais. Em 2018, havia seis cantinas oficiais, licitadas, nas prisões gaúchas. Hoje, são 30 (já foram 38). A Lei de Execução Penal (LEP) prevê que penitenciárias e presídios tenham local destinado "à venda de produtos e objetos permitidos e não fornecidos pela Administração". Mas a lista do que pode ser comercializado é longa e vai além de mercadorias básicas que o Estado não oferece. Um agente penitenciário que conversou com o Grupo de Investigação da RBS (GDI) contou que os detentos desfrutam até de açaí:
— E ainda ficam reclamando quando é esquecido de colocar o leite condensado ou o leite em pó.
Outra servidora lamenta:
— Tem gente que acaba se endividando por um refrigerante e nunca mais consegue sair da facção.
O comércio clandestino organizado pelas facções preocupa autoridades.
— Existe um preço na cantina (oficial) e outro na galeria, na revenda. Em muitas casas prisionais, os apenados compram, nas cantinas, material de higiene e produtos de limpeza (destinados à faxina da própria prisão), além de outros itens que seriam obrigação do Estado dar. Valores de aluguéis, preços dos produtos, nenhum desses itens é da alçada do Judiciário, e sim do Executivo. Assim, fica muito difícil controlar o que é comercializado e de que forma — diz a juíza Sonáli da Cruz Zluhan, da 1ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre.
Em cantinas oficiais, baldes têm valores que variam de R$ 30 a R$ 40, enquanto um chuveiro pode custar de R$ 70 a R$ 120. Esse valores, no entanto, só valem até os produtos chegarem na galeria, onde o ágio é aplicado.
— Nos preocupa a maneira como funciona, com cobrança de preços altos e o constrangimento para o preso comprar. A gente sabe que fica nas mãos da liderança e essa rentabilidade, muitas vezes, financia o crime. Pode haver as cantinas, mas administradas pelo Estado e não pelos criminosos — avalia Carlos Henrique Wendt, diretor do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc).
Negócio valorizado
Neste contexto, ter uma cantina dentro do sistema penal virou um grande negócio, já que elas contam com clientela exclusiva e preços praticados bem acima do mercado. O Estado concede a exploração por meio de pregões, que obtêm ofertas cada vez mais altas. O GDI apura a situação desses comércios em alguns estabelecimentos desde o ano passado, quando altos lances para explorar o negócio causaram alvoroço entre comerciantes e chegaram como alerta de descontrole a autoridades.
O valor pago ao Estado para explorar um comércio dentro de uma única cadeia gaúcha se tornou ano passado 14 vezes mais caro do que em 2021. É o caso da Penitenciária Modulada Estadual de Osório (PMEO), onde o vencedor da licitação pagava, até setembro, R$ 313,6 mil mensais por um espaço de 53 metros quadrados. Em 2021, o ponto custava R$ 22,4 mil por mês.
Em Charqueadas, a disputa por uma cantina, a da Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), chegou a um lance de R$ 643 mil em 2022. Essa licitação foi suspensa e outra ainda está pendente, tendo como valor melhor classificado até o momento o de R$ 395 mil mensais. Com população de 2,2 mil presos, a PEJ é hoje a maior prisão do Estado.
Novas unidades não terão cantinas
Os problemas decorrentes deste comércio não são desconhecidos pelas autoridades, mas a solução é considerada difícil até que o Estado possa suprir os itens que não consegue fornecer os presos.
— As cantinas, embora atendam o que às vezes é uma omissão do Estado, são um foco de problemas por essa possibilidade de comércio irregular feito pelos presos que fortalece quem já tem poder de comando. O MP tem ciência do problema e tem dialogado com o governo. Mesmo que as cantinas passem por processo licitatório, isso não inibe essas situações constrangedoras do uso dos produtos de forma irregular por criminosos. Felizmente, nas unidades inauguradas recentemente e as que estão em construção, não haverá mais cantinas, com todo o necessário para a alimentação sendo provido pelo Estado — diz o subprocurador-geral para Assuntos Institucionais do MP, Luciano Vaccaro.
O secretário de Sistema Penal e Socioeducativo, Luiz Henrique Viana, admite que a revenda de produtos por subcantinas é um problema que interfere, inclusive, na segurança dos estabelecimentos:
— As celas não são ambientes para reservar alimentos. Como a cantina existe, não há por que ter estoque nas celas. Isso nós estamos aperfeiçoando para uma fiscalização que não permita o subcomércio. Com o melhoramento do sistema a partir da construção de presídios mais modernos, o ideal é que o Estado forneça tudo que o apenado necessita, cinco refeições por dia. E também que os visitantes possam levar alguma coisa.
Quanto aos altos valores propostos em lances pelos aluguéis, o secretário disse que são situações que estão sendo olhadas com "lupa" para evitar problemas nos presídios. Em relação à longa lista do que pode ser vendido pelas cantinas, Viana explicou:
— Nós temos muito produtos. Coisas que as pessoas usam no dia a dia, não podemos limitar por serem apenados. Eles estão cumprindo uma condenação de privação de liberdade, não podemos aumentar a pena com limitações.