Ter um negócio dentro de uma prisão tem suas peculiaridades. No caso das cantinas oficiais — licitadas pelo Estado, que recebe aluguel pela concessão do espaço para comércio — há interesse direto de líderes de organizações criminosas no trânsito de produtos para as galerias que dominam. Apesar de o Estado ser o contratante, muitas vezes, comerciantes precisam negociar com criminosos.
Os preços, já mais altos do que os praticados no mercado na rua, sofrem ágio que ajuda a engordar as finanças de grupos criminosos. Por meses, o Grupo de Investigação (GDI) da RBS conversou com comerciantes que atuam neste ramo e com autoridades. Abaixo, leia trechos da entrevista de uma pessoa que tem contato com a atividade, mas preferiu não se identificar:
No ano passado, houve lances altos na concorrência pela cantina da Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ). O valor chegou a mais de R$ 600 mil mensais. Por sua experiência, você avalia que é possível pagar tanto?
Corria uma informação de que a venda da cantina da PEJ ultrapassava o R$ 1 milhão por mês (cálculo para a população de quase 3 mil detentos, à época). Teve lance de R$ 643 mil, o segundo colocado na disputa ofereceu R$ 641 mil (os dados dos lances são públicos). Outra empresária chegou a R$ 450 mil na oferta dela. Isso demonstra que quem tem expertise no negócio sabe o quanto a cadeia vale, sabe quanto dá para pagar.
Como os comerciantes fazem o cálculo para dar os lances de aluguéis?
O cálculo para lance não é com base no tamanho da sala. O que interessa é quantos presos a casa suporta e, principalmente, se esses presos têm poder aquisitivo. Alguns deles são faccionados, outros são líderes de organizações criminosas. E esses caras consomem muito nas cantinas, porque não compram só para eles. Eles mantêm toda uma facção lá dentro, com tudo do bom e do melhor.
O negócio vale a pena então.
Não é só uma questão de investimento. Se mostrar hoje o faturamento bruto de uma empresa, qualquer investidor entra junto. O problema é que a incomodação é enorme, há ameaças quase que diariamente por parte dos presos.
Por quê?
As facções querem ter crédito, querem comprar para pagar no fim do mês. Se não deixa, eles imaginam que a pessoa é da oposição, que faz parte da outra facção. Tem de fazer reunião com as lideranças para explicar que não é.
Uma queixa antiga nas prisões é sobre os preços praticados pelas cantinas, que seriam altos e que, além disso, quando a mercadoria chega às galerias, ainda é revendida por preço maior.
Eventualmente, os presos reclamam isso para o promotor que fiscaliza as prisões e o Ministério Público questiona: por que tu vende refrigerante a R$ 18 sendo que o preço médio no mercado é 9? É que se aplicar qualquer técnica, seja mark-up, seja ponto de equilíbrio, todas vão dar R$ 18. Porque o custo da mercadoria é baixo e a margem de lucro também é. O custo operacional é alto. O MP diz que a queixa é que o refrigerante é R$ 25. Mas é fornecido pelas cantinas a R$ 18 para um representante de galeria. Não é possível atender a todos os presos da galeria. Vem um representante com 50 listas de compras, uma de cada cela, um monte de dinheiro, um monte de comprovante de Pix que a família faz ou o advogado faz, e a cantina entrega toda a mercadoria para aquele representante. O problema é que ele pega a R$ 18, sobe na galeria e lá a cantina é da facção. Quer comprar deles, tem que pagar a margem que a facção cobra para entregar na cela.
Os presos não conseguem comprar direto da cantina pelo preço normal?
Na maioria das vezes, sim. As cantinas trabalham muito com Pix. Se o parente pagar R$ 18, a cantina entrega na porta da galeria a R$ 18. Digamos que 40%, 50% deles conseguem fazer isso quando não tem facção dominante, quando moram junto com simpatizantes.
Mas é difícil ter galeria que não seja dominada por facção.
Todas são, mas há algumas que permitem que simpatizantes ou não faccionados também convivam na mesma galeria. Mas se é faccionado tem de comprar da cantina da facção. Quando a cadeia é pequena, o preso consegue pegar direto. Mas em uma cadeia grande é quase impossível. Na verdade, a guarda vai escoltar um cantineiro (um preso de cada galeria) até a cantina, aquele cara vai puxar três, quatro carrinhos de mercado cheios e vai levar para a galeria. O que é feito dos corredores para lá é com eles.
Essa pessoa pega o refrigerante a R$ 18 e pode vender por R$ 25.
Isso. E, ao mesmo tempo, ficam (os líderes de facções) brigando (com o concessionário da cantina), ameaçando, porque querem que baixe o refrigerante de R$ 18 para R$ 15, de R$ 18 para R$ 10 porque assim aumenta a margem de lucro deles. Não que o preso, o consumidor final, vai ter esse desconto.
Tem um clima tenso entre o concessionário e as facções?
Geralmente, fica tudo em paz. Quando tem transferência para presídio federal e muda uma liderança, eles (os novos chefes) vão olhar como está o faturamento (da facção em todos os negócios). Dizem que a cantina está cobrando muito caro e querem que baixe valor da mercadoria. Esses caras, como gestores ou presidentes de uma organização, querem deixar a marca deles. Mostrar que, quando assumiram, melhorou a coisa. E as cantinas são alvo dessas tentativas. Frequentemente, os comerciantes fazem reunião com eles para explicar que o valor ali é mais alto do que na rua porque o custo é mais alto, que as margens de lucro são iguais ou menores, que há fiscalização por vários órgãos. Os comerciantes vivem respondendo a questionamentos e não vão achar que estão enriquecendo ou pior, que "ele cobra caro dos Manos porque é dos Bala ou cobra caro dos Bala porque é dos Manos". Comerciantes não são faccionados, não tratam ninguém diferente de ninguém. Se uma facção receber crédito, a outra também recebe. Se cortar crédito de uma, corta da outra também. Mas, eventualmente, dá estresse.
Pelo seu conhecimento, qual é o cálculo de lucro que os comerciantes fazem normalmente?
É calculado lucro líquido de cerca de 5%. Um comércio de alimentos (na rua) trabalha com margem de lucro de 20%. Só que em um suposto faturamento de R$ 1 milhão, digamos, se conseguir livrar 5%, está ótimo. Se compra do caminhão mil garrafas de refrigerante, o valor é um. Se for comprar 10 mil garrafas, o valor é outro. É uma regra simples do comércio. Quem compra pouco vai no varejo. Quem compra muito vai no atacado, e quem compra demais, vai na indústria. Alguns pedidos, dá para atingir o mínimo exigido pela indústria. Daí é possível aproveitar a margem que ficaria no atacado ou no varejo.
Que outra vantagem tem o negócio?
É a não concorrência. Pelo Código de Defesa do Consumidor, não se pode exercer preço abusivo, ter lucro abusivo. Quando o Ministério Público questiona, o que pode ser explicado: que o pastel do aeroporto é mais caro do que o pastel da rodoviária não é por causa da massa do pastel, nem de quem frita. É por causa do custo operacional. O aluguel pago na rodoviária é bem inferior ao que se paga no aeroporto, por isso, os valores são mais caros. Quando o comerciante entra numa prisão, onde o risco é enorme e o valor do aluguel, por exemplo, pode exceder R$ 500 mil por mês, é lógico que os produtos vão ser um pouco mais caros do que os de mercado. Mas as margens de lucro líquido, aquilo que sobra para o donos de empresas, não são abusivas, inclusive, são menores do que na rua. Só que o mercado lá fora sofre com a concorrência, as cantinas, não. A vantagem delas é como se fossem uma aplicação bancária. O comerciante vai investir tanto por mês de estoque, vai vender certamente tanto por mês e vai ter certo aquele lucro no fim do mês.
As listas de produtos que são vendidos pelas cantinas, normalmente, vão muito além do fornecimento de produtos básicos.
Depende muito do presídio, é um poder discricionário do diretor. Vou dar um exemplo: bombom. O diretor diz: "Não vejo problema em bombom, nós temos scanner, a caixa de bombom passa no scanner, ela é selada, se for aberta fica fácil o agente perceber, e se algum dia eu pegar qualquer coisa num bombom, aí eu proíbo tudo, cai tudo, não tem mais arrego". Então aqueles caras tomam cuidado. Se forem tentar colocar droga, celular, arma para dentro da cadeia, eles tentam por drone, pela visita, mas não pela cantina para não perder o arrego que seria para uma penitenciária inteira. Em prisões grandes, cada um é de um canto do Estado e de uma facção. Aí o fulano tem a grande a ideia de tentar corromper a cantina e passar cachaça dentro de uma garrafa de refri. A direção pega e proíbe o refrigerante. O que vai acontecer? É verão, calorão, pessoal jogando futebol e ninguém mais vai tomar refrigerante porque o fulano resolveu usar a cantina. O dano que uma vai causar vai atingir as outras também e aí explode uma guerra.
Tem limite de quanto o preso pode gastar?
O que acontece é que existem tentativas de lavagem de dinheiro. Por exemplo, o preso comete um crime de extorsão de dentro da prisão, liga para alguém e diz que sequestrou o filho ou tem nudes da pessoa e consegue extorquir R$ 5 mil. O que esse preso vai tentar: ele diz para a vítima depositar na conta da cantina. A cantina recebe um Pix de R$ 5 mil que é para o preso tal. Se o dono da cantina der esses R$ 5 mil em mercadoria, cooperou para essa extorsão. Então, quando preso quer que entre pagamento por Pix para a cantina, é preciso que entre bem identificado.