O crime de descaminho — que corresponde ao comércio de mercadorias autorizadas no país, porém sem percorrer os caminhos legais para o recolhimento de impostos — é o novo alvo dos investimentos de organizações criminosas no Rio Grande do Sul. No passado recente, o delito foi tratado como objeto de iniciativas isoladas, encerrando grande parte das investigações com a captura de produtos e identificação dos transportadores.
Contudo, esta perspectiva mudou. De acordo com as autoridades públicas, a lucratividade ampliada com a sonegação de tributos e o baixo risco de sanções penais severas — crime prevê penas de um a quatro anos de prisão — têm atraído as quadrilhas e o capital que era aplicado em crimes comuns como tráfico de drogas, roubo de cargas e de veículos.
— É o tipo de crime que buscamos mostrar, para a Justiça e para a sociedade, que precisa ter uma revisão sobre suas penalidades. O cenário mudou. As investigações mais recentes mostram que o negócio foi encampado por organizações criminosas. Percebemos a migração e o cruzamento das práticas por quadrilhas que atuam ou atuavam em outros tipos de crimes — descreve o delegado federal Cristiano Gobbo.
Titular da Delegacia de Repressão a Crimes Fazendários da Polícia Federal (PF) no Rio Grande do Sul, Gobbo revela ter cerca de 50 inquéritos em andamento. As apurações, sustenta o delegado, demonstram a inserção de capital robusto supostamente proveniente das organizações criminosas para o financiamento do descaminho e do contrabando de mercadorias.
— O crime organizado tem sua estrutura montada, com pessoal, capital e conexões internacionais. Pode atuar em crimes de alto risco e penalidades elevadas, mas encontra no descaminho ou no contrabando uma alternativa de utilizar a mesma estrutura para praticar um delito de baixo risco e alta lucratividade — pontua.
Em operação deflagrada há menos de um mês, em Porto Alegre, a PF desarticulou esquema que teria lesado o erário em cerca de R$ 30 milhões por tributos não recolhidos em quatro anos de atividades ilegais. O "artífice" da quadrilha, conta Gobbo, era um homem que mantinha relações comerciais no Brasil e no Exterior, representando o centro de uma rede para o comércio irregular de iPhones na Região Metropolitana.
— A descoberta do esquema ocorreu por uma apreensão, realizada há pouco mais de ano, quando o investigado foi abordado transportando um lote de aparelhos no Aeroporto Salgado Filho. Meses depois, identificamos um estabelecimento para o qual ele era fornecedor. O aprofundamento das investigações mostrou que a rede era composta por mais de 30 lojas na Capital e região, que havia ramificações fora do Brasil e um esquema para lavar dinheiro e transformar o produto dos crimes em patrimônio — relata.
Apesar das evidências de condutas ilícitas, o investigado não está preso. Bens presumidamente auferidos com lucro de crimes estão apreendidos, entre eles automóveis e uma casa em condomínio de alto padrão em Xangri-lá, com valor estimado em cerca de R$ 5 milhões. As investigações prosseguem.
RS na rota entre o Uruguai e o comércio da Rua 25 de Março
Em outra operação, no final de agosto, a PF encontrou evidências ainda mais contundentes sobre a inserção do crime organizado para o patrocínio do descaminho. As investigações tiveram início em Pelotas, onde a delegada federal Shirley Caselani Sitta identificou "líderes criminosos" que comandavam e financiavam a importação irregular de produtos da China e dos EUA, tendo como fachada lojas que mantinham em freeshops legalizados, na fronteira do Uruguai com o Brasil.
É o tipo de crime que buscamos mostrar, para a Justiça e para a sociedade, que precisa ter uma revisão sobre suas penalidades. O cenário mudou.
CRISTIANO GOBBO
Delegado federal
— No começo das investigações, tínhamos os indícios de entrada irregular de produtos para serem vendidos no Estado. Mas o acompanhamento das movimentações nos revelou um grande esquema que abastecia a Região Sul e, em associação com outras organizações criminosas, conduzia milhões em mercadorias até depósitos que abastecem o maior centro popular de compras do país: o comércio da Rua Vinte e Cinco de Março, em São Paulo —informa Shirley.
Na ação coordenada pela delegada em território paulista, os agentes federais apreenderam aproximadamente R$ 180 milhões em mercadorias de descaminho. Além disso, foram capturados 18 caminhões, quatro ônibus e três vans utilizados na movimentação das cargas ilegais. O trabalho levou a PF até um depósito, onde foram localizadas mais 320 toneladas de eletrônicos, cigarros e bebidas, cosméticos, calçados e peças de vestuário sem procedência regular, em volume avaliado em cerca de R$ 150 milhões.
Foram identificadas e presas em flagrante 26 pessoas. Apenas duas delas permanecem detidas em regime preventivo. Um dos presos é irmão do principal líder, sendo considerado o segundo hierarquia da organização. O outro era o responsável pelo depósito. O líder do grupo, conforme a PF, está foragido e teve sua última localização apontada na Colômbia.
Apreensões em rodovias são ponto de partida para investigações
Fundamental na cadeia de combate aos crimes de descaminho e contrabando (quando os produtos burlam o fisco e não são autorizados no país), as polícias rodoviárias atuam na fiscalização de cargas e realizam cotidianamente apreensão de mercadorias irregulares. Somente na semana passada, a Polícia Rodoviária Federal interceptou três caminhões que carregavam produtos importados ilegalmente.
Em Santiago, na BR-287, a PRF teve o apoio da Brigada Militar e prendeu dois homens que dirigiam caminhões carregados com diversas caixas contendo calçados, roupas e cosméticos trazidos do Uruguai. A abordagem ocorreu no entroncamento com a RS-168. A carga dos dois veículos foi avaliada em mais de R$ 1 milhão.
Menos de duas horas depois, em Panambi, agentes da PRF flagraram um caminhão que carregava caixas de vinho e cosméticos estrangeiros sem documentação. A ação ocorreu na BR-285. O condutor foi preso em flagrante. Os três caminhões e as mercadorias foram recolhidos e entregues à Receita Federal.
Descaminho e contrabando geram prejuízo bilionário
Após as ações policiais, o processamento das consequências dos crimes de descaminho e contrabando passa pela Receita Federal, que avalia valores de produtos para determinar qual é o prejuízo de arrecadação para a sociedade. Segundo Carlos Eduardo Dulac, Chefe em exercício da Divisão de Repressão ao Contrabando e Descaminho da 10ª Região Fiscal (RS), estudos apontam que os prejuízos diretos e indiretos do contrabando e descaminho superaram os R$ 400 bilhões no país no ano passado.
— Grande parte são recursos que deixam de entrar nos cofres públicos e que poderiam ser utilizados em áreas sensíveis, como combate à fome, saúde, segurança e educação. Ainda, é necessário destacar os riscos à população no consumo de produtos que não possuem certificações dos órgãos de segurança e que são transportados e armazenados em condições precárias — alerta.
Para Dulac, a sociedade civil pode contribuir "diretamente", deixando de adquirir e consumir estes produtos ilegais; e, indiretamente, efetuando denúncias para a Receita Federal e demais órgãos de segurança pública e controle.
Vice-presidente Financeiro da Federação do Comércio de Bens e de Serviços do Estado do Rio Grande do Sul (Fecomércio-RS), o empresário André Roncatto também destaca o impacto negativo na capacidade dos segmentos econômicos afetados em ampliar suas atividades, deixando de empregar mais trabalhadores.
— Traz prejuízos sociais, menos emprego, leitos em hospitais, qualidade da educação, além de contribuir com a insegurança pelo financiamento do crime organizado.
Receita Federal agrega tecnologia ao treinamento de agentes
Desde a terça-feira (21) até esta quinta (23), a Receita Federal em Porto Alegre realiza o primeiro treinamento aduaneiro com tecnologia de realidade virtual. A tecnologia — desenvolvida pelos próprios servidores do órgão — transporta para um ambiente virtual os cenários e desafios das atividades aduaneiras com o objetivo de treinar e aperfeiçoar a conduta dos agentes que atuam na repressão ao contrabando e ao descaminho.
Na avaliação do analista tributário Carlos Berta Dohrn, desenvolvedor do projeto, a imersão proporcionada pela realidade virtual possibilita uma experiência de treinamento coletivo altamente prática.
— Através de cenários virtuais, com recursos visuais e sonoros adaptados para diferentes situações, são recriadas diversas possibilidades de ação do trabalho da aduana. Toda a prática é gravada a partir das imagens virtuais para permitir, em um segundo momento, uma revisão tática, tanto da equipe, quanto individual — comenta.
Decisão de tiro
A principal vantagem, explica Dohrn, é a segurança conferida aos agentes e às pessoas abordadas. Após diversas simulações, em um ambiente seguro, os servidores desenvolvem e aprimoram habilidades de tiro, de abordagem de pessoas e de percepção de risco para decisão de tiro, minimizando a possibilidade de condutas erradas ou precipitadas.