Ao detalhar o histórico de criminosos presos em flagrante durante roubos de cargas no Rio Grande do Sul, a Polícia Civil tem deparado com uma situação semelhante. Muitos deles possuem extensa ficha criminal, mas por outros crimes, como assaltos a residências, ataques a bancos, tráfico de drogas e até homicídios. O Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) vem monitorando a migração de bandidos, com expertise em outros delitos, para os ataques aos transportes e armazenamento de cargas.
No topo da lista dos produtos mais visados, segundo a polícia, estão os cigarros. Na última quarta-feira (8), um entregador foi rendido em São Leopoldo, no Vale do Sinos. Enquanto fazia a distribuição dos produtos, foi atacado por criminosos e levado para um cativeiro. Após cerca de duas horas, o motorista foi resgatado pela polícia, no mesmo local onde parte da carga foi recuperada. O restante foi localizado em Novo Hamburgo, no bairro Santo Afonso. Durante a ação, a polícia prendeu um suspeito de envolvimento no crime.
O homem detido tinha antecedentes por roubo a banco, roubo a malote, cárcere privado e roubo a residência, entre outros crimes graves. Essa característica, de histórico múltiplo por outros delitos, conforme a polícia, já vinha sendo percebida em outros casos.
— Algumas quadrilhas, que já atuavam em outros ramos da criminalidade, por exemplo o tráfico de drogas, têm migrado para os roubos de cargas, especialmente de cigarros. Além de ser uma carga muito valiosa, o escoamento é muito rápido. Eles conseguem receptadores, que compram essa mercadoria, em mercadinhos, vendinhas, e até alguns mercados maiores. É um produto consumido em todos lugares — detalha a delegada Isadora Galian, titular da Delegacia de Repressão a Roubo e Furtos de Cargas do Deic.
Há casos, quando envolvem quadrilhas maiores, nos quais os produtos são remetidos inclusive para fora do Estado. Mas quando se tratam de grupos menores, costumam ser repassados dentro da Grande Porto Alegre. Um dos objetivos da equipe da delegacia é justamente trabalhar para recuperar as cargas antes que elas cheguem ao destino, e buscar prender os criminosos em flagrante. A troca de informações com outras polícias, como a Brigada Militar, Polícia Rodoviária Federal, além de policiais de outros Estados, como Santa Catarina, é uma das estratégias empregadas. Entre fevereiro e março, cerca de R$ 2 milhões em cargas foram recuperados em ações que tiveram a participação do Deic.
Um dos casos recentes aconteceu em Santa Catarina, com apoio da Polícia Civil e Militar do Estado vizinho. Uma carga de cigarros, avaliada em cerca de R$ 600 mil, foi recuperada a partir dessa troca de informações. Um motorista foi rendido e teve o caminhão levado pelos criminosos. O veículo foi localizado no pátio de uma empresa em Criciúma, com toda a carga no interior. Três pessoas foram presas em flagrante no local, por receptação e adulteração de sinal de veículo automotor. Nesse mesmo galpão, foram encontradas peças de veículos sem procedência, possivelmente resultado de roubos de carros.
— O roubo de cigarros é hoje o nosso maior problema. Existe uma migração, expansão da criminalidade para essa área. Nossa ideia é não deixar crescer — diz a delegada.
Como agem
Os grupos envolvidos nos roubos de cargas podem ser divididos em dois. De um lado, as quadrilhas especializadas nesse tipo de crime, que já possuem uma rede estruturada, desde a obtenção de informações, o uso de veículos roubados e clonados, até o armazenamento temporário da carga e distribuição dos produtos. Mas, por outro, tem pulverizado pequenas quadrilhas, sem expertise.
— O que temos visto é o crescimento dessas pequenas células, que tem efetuado roubos amadores, por entender que a atividade é altamente lucrativa — afirma a delegada.
Um dos objetivos da investigação é identificar também pessoas que possam estar repassando informações privilegiadas aos criminosos. Em geral, os ataques costumam acontecer nos momentos de parada dos entregadores. Em muitos casos, a atuação dos bandidos se dá à luz do dia e de forma tão discreta que as pessoas ao redor nem percebem que aquele que está embarcando no caminhão é um assaltante. Não é incomum que os motoristas sejam feitos reféns, enquanto os ladrões levam a mercadoria para fazer o transbordo e repasse.
Outro produto visado pelos assaltantes são os eletrônicos. Na última semana, um grupo armado rendeu um funcionário e saqueou um caminhão que levava produtos da Apple até uma loja autorizada, no bairro Passo d'Areia, zona norte de Porto Alegre. O ataque, na Avenida João Wallig, ocorreu enquanto o trabalhador descarregava os eletrônicos, na terça-feira (7).
O episódio ocorreu em plena luz do dia, por volta das 10h30min, próximo do acesso ao Shopping Iguatemi. Pouco depois, dois suspeitos foram presos, com itens da Apple num veículo, no bairro Jardim do Salso. A suspeita é de que o roubo tenha sido encomendado, para obtenção dos produtos, e que os criminosos tenham recebido informações privilegiadas para organizar o crime. Esses mesmos itens depois são revendidos no comércio.
— Ás vezes, as pessoas compram produto achando que está mais barato, e estão alimentando um mercado criminoso que só existe porque existe alguém para comprar. Além disso, se começarmos a perceber aumento violento de roubos de determinada mercadoria, como eletrônicos, as empresas vão ter que investir em mais equipamentos de segurança e esses valores serão repassados aos consumidores — alerta a delegada Isadora.
Os números
GZH solicitou dados à Secretaria da Segurança Pública (SSP) do Estado sobre este tipo de crime. Os indicadores enviados são referentes aos casos de roubos e furtos de mercadorias em caminhões. Em janeiro, foram 19 registros desse tipo no RS — soma igual à do mesmo período do ano passado. Os dados de fevereiro ainda não foram compilados. No entanto, os casos investigados pelo Deic sobre cargas são mais abrangentes. Desde os roubos durante o transporte, seja a caminhões ou veículos de menor porte, como os utilitários, até assaltos a estoques.
Somando todos esses casos, segundo a delegada, por dia, pelo menos duas ocorrências de roubos de cargas chegam ao conhecimento da polícia no RS. Um mapeamento constante dos roubos de cargas é realizado pela equipe, que busca identificar as áreas mais sensíveis. A polícia vem realizando também reuniões com as empresas do setor tabagista para discutir medidas de segurança e estratégias para tentar reduzir esse tipo de crime.
— As empresas (de cigarros) nos relatam que houve diminuição dos casos na comparação com o ano passado. Vinha numa decrescente o roubo de carga. Ano passado, aumentaram os roubos de cigarros e nesse ano começou a dar uma reduzida de novo. As ações conjuntas e as prisões preventivas ajudam nessa redução — afirma a delegada.
Dentro da delegacia, há equipes de sobreaviso para partir sempre que ocorre um roubo de carga. Com as apreensões e prisões, e atuação em conjunto com a inteligência da Brigada Militar, espera que os novos grupos percam força:
— Vamos conseguir segurar essas células para não crescerem, para que não se tornem grandes organizações. Temos que sufocar agora, com prisões em flagrante, recuperando cargas e imediata restituição às empresas. Concomitantemente, buscamos aprofundar as investigações para desmantelar a organização. A ideia é também identificar os receptadores, que muitas vezes não se enxergam como alguém que tem participação no crime.
Em alguns casos, a polícia percebe que aquelas pessoas que adquirem os produtos para serem comercializados demandam os criminosos sobre o tipo de itens que buscam, estabelecendo acordos prévios para ficar com os produtos. Quando isso é identificado, além da receptação, eles podem responder também pelo roubo.
Presidente do Sindicato das Empresas de Transportes de Carga e Logística no Estado do Rio Grande do Sul (Setcergs), Sérgio Mário Gabardo cobra mais fiscalização e segurança nas estradas.
— Estamos muito preocupados porque hoje não é só o roubo da carga, temos também um fator muito importante, grave, que é o roubo do caminhão. Hoje, a maioria dos postos não tem segurança, e o motorista não tem lugar para parar. Deveríamos, no mínimo, ter lugares para o motorista parar com segurança. Fica muito fácil para o ladrão — diz.