Esta é a história de um assassinato que abalou o Rio Grande do Sul, ocorrido em um tempo em que os homens usavam chapéus de feltro e as mulheres escreviam cartas para despachar aos parentes e amigos distantes. Um crime peculiar não só pela importância da vítima no cenário político gaúcho, mas por ter acontecido dentro de um estúdio de rádio, com a emissora ao vivo. Mas, embora testemunhada por milhares de ouvintes, a morte do deputado estadual Euclydes Nicolau Kliemann ainda guarda, passados 60 anos, contornos nebulosos.
Para entender esta história, é preciso voltar até 31 de agosto de 1963. Aquele dia, um sábado, havia amanhecido com clima abafado em Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo. Após um período mais frio do que o habitual para o mês, o inverno ensaiava sua despedida com temperaturas que se aproximaram dos 30ºC por volta do meio-dia.
Em localidades do interior do município, como Linha Santa Cruz, Boa Vista e Monte Alverne, onde mudas de tabaco recém-transplantadas se desenvolviam nas lavouras, incontáveis aparelhos de rádio permaneciam sintonizados na Rádio Santa Cruz mesmo após a transmissão, ao vivo, do discurso do deputado Euclydes Kliemann, 41 anos, muito votado naqueles lugarejos.
A voz que então ecoava nos transmissores, aos brados, era do vereador Floriano Peixoto Karan Menezes, mais conhecido pelo apelido de Marechal por ser tocaio do segundo presidente da história do Brasil, o marechal Floriano Peixoto. O vereador do antigo PTB de Getúlio Vargas e do então presidente João Goulart, o Jango, não contava com muita simpatia entre o eleitorado rural de Santa Cruz do Sul, mais conservador e alinhado ao PSD de Kliemann. Naquela colônia de origem alemã, ninguém gostava muito dos "der kommunisten", os "comunistas".
Mas o tom ácido da fala de Marechal, ao devolver as alfinetadas que Kliemann dera, minutos antes, nos rivais políticos, atrai a atenção de quem escuta o rádio naquele começo de tarde. Por vezes, o vereador chama Kliemann de "cara dura" e "mentiroso". Ao rebater críticas feitas pelo deputado, acusa-o de ser "muito baixo mesmo". E então, Marechal toca em uma ferida que não cicatrizara em Kliemann:
— E, ainda mais, partindo essa acusação baixa de um elemento que é ou foi, e os jornais aí estão para o dizer: suspeito. Suspeito no caso havido com sua esposa. O deputado Kliemann faz essas acusações...
Mesmo o mais ingênuo dos ouvintes entendera o que Marechal quis dizer com aquilo. Havia mais de um ano que o misterioso assassinato de Margit Kliemann, esposa de Euclydes, era manchete nos jornais do Estado. Margit, uma mulher esbelta, 38 anos, cabelos loiros e olhos azul-esverdeados, fora encontrada morta em 20 de junho de 1962 no casarão que Kliemann alugara no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, quando fora eleito deputado.
Espancada com um objeto contundente, Margit foi encontrada já sem vida pelo próprio marido, aos pés da imensa escadaria que ligava o térreo ao segundo pavimento. Não tardou até que Kliemann se tornasse, para a polícia, o principal suspeito do crime. E os jornais da época não tiveram pudor em explorar, em grandes títulos, essa notícia quente.
Mas então, algo estranho é transmitido pelas ondas da Rádio Santa Cruz. Marechal continua falando quando é interrompido por um grito:
— Essa não!
O que se ouve a seguir é um estampido — um tiro — e o barulho de um corpo que cai no chão do estúdio. E a emissora sai do ar.
Estúdio invadido
Na cidade, parte dos ouvintes da rádio chegou a uma conclusão que parecia óbvia: Kliemann havia assassinado Marechal. O deputado, cujo temperamento explosivo tantas vezes norteara seus discursos e embates na Assembleia Legislativa, tinha fama de não levar desaforo para casa. Não demorou até que partidários de Marechal partissem à emissora com espingardas e revólveres em punho, prontos para o revide. Mas, ao invadir o estúdio, não encontraram nem Kliemann, nem Marechal.
— Cadê o Euclydes, aquele bandido? — exigiram saber.
Pela boca dos funcionários da rádio, souberam, incrédulos, que havia ocorrido justamente o contrário: havia sido o vereador Floriano Peixoto, um camarada pacato, famoso pelo estilo brincalhão, marido de uma professora e pai de cinco filhos, o improvável autor do tiro. Ainda que nunca antes tivesse manejado uma arma, Marechal havia sacado o revólver do bolso interno do paletó, ao mesmo tempo em que saltava da cadeira, e pressionado o gatilho no momento em que Kliemann invadia o estúdio com a mão levantada em sinal de "pare". A bala atravessou a mão e se alojou no peito do deputado.
Ocorre que Kliemann, após ocupar o microfone, decidira deter-se por mais alguns minutos na emissora. Havia sido dele a ideia de promover, naquele sábado, um debate ao vivo. O teor da mesa redonda seria uma verba de 50 milhões de cruzeiros que o deputado havia obtido junto ao governo do Estado para a pavimentação de uma estrada em Santa Cruz do Sul.
O dinheiro acabou não chegando à cidade porque a Câmara de Vereadores torceu o nariz para o convênio que deveria ser pactuado com a Secretaria Estadual dos Transportes, e o assunto virou polêmica. Contudo, ao saber que só Marechal iria à emissora, Kliemann desistiu do debate, optando por um monólogo. O vereador que falasse o que quisesse depois.
Ao perceber o teor áspero da fala de Marechal, Kliemann sentou-se à máquina de escrever do diretor da rádio e começou a bater uma nota em resposta, a ser lida por um dos locutores. Mas, quando ouviu a referência às suspeitas sobre a morte de Margit, perdeu as estribeiras. Enveredou ao estúdio com tanta rapidez que um dos radialistas, ao tentar detê-lo, não conseguiu. Alvejado logo ao passar pela porta, girou sobre os calcanhares e tombou.
Marechal, ainda com o revólver Smith & Wesson em punho, tratou de abandonar o local. Na saída, foi interpelado pelo vereador Arno Frantz, correligionário e amigo de infância de Kliemann, que acompanhara o deputado à rádio. Frantz, um tipo bonachão, que ainda viria a se tornar um dos prefeitos mais icônicos da história de Santa Cruz, estava perplexo:
— Marechal, tu deste um tiro no Kliemann…
— Dei, e o que tem isso? Tu não te chega, que já dei um tiro e posso dar dois — respondeu Marechal, precipitando-se para fora da emissora.
Na rua, embarcou no carro de um amigo com quem havia chegado à rádio e rumou à casa de um advogado, onde se entregaria à polícia minutos depois. Frantz tratou de tentar socorrer o amigo. Com ajuda da equipe da rádio, colocou o deputado em um jipe Candango e rumou ao Hospital Santa Cruz, a 300 metros dali. Mas não havia mais o que os médicos pudessem fazer. A bala havia rompido a artéria pulmonar, matando Kliemann por hemorragia interna.
Conspiração?
Diferentemente do assassinato de Margit, cuja autoria jamais se descobriu, a morte de Kliemann foi um crime aparentemente sem mistérios, cometido diante de testemunhas e transmitido ao vivo para milhares de ouvintes. Contudo, ao homicídio se sucederam dúvidas nunca plenamente respondidas. Por que Marechal, um vereador nada afeito à violência, fora ao estúdio armado? E com uma arma que sequer era dele?
O revólver que tirou a vida de Kliemann pertencia a um correligionário político de Marechal, também vereador. Esse disse à polícia que, por morar no interior, não tinha tempo de ir à cidade em horário comercial para comprar balas. Por conta disso, Marechal se dispusera a ficar com o revólver para adquirir-lhe a munição. A história, corroborada por Marechal, soou à polícia como desculpa esfarrapada. Afinal, para comprar balas não era necessário apresentar a arma. Ambos argumentaram que, por outro lado, de nada adiantaria ao dono do revólver permanecer com ele descarregado.
Marechal ainda alegou que, ao perceber o deputado invadindo o estúdio, sacou o revólver e, sem fazer mira, "instintivamente disparou, para não ser liquidado, surrado". Acrescentou que conhecia Kliemann desde criança e, portanto, sabia tratar-se de um "homem de briga e de gênio violento".
Essa versão nunca convenceu os correligionários e as pessoas próximas a Kliemann. Para esses, a morte do deputado fora fruto de uma trama friamente elaborada para tirar de cena, de forma brutal, um adversário político proeminente. Na seara desta hipótese, Marechal não passou de mera engrenagem em uma conspiração maior. Tal conjectura é insinuada em série de anúncios pagos publicados em jornais da época por integrantes do PSD. Também foi compartilhada por Suzana Kliemann, a filha mais velha de Margit e Kliemann, hoje já falecida, em conversa com este repórter em 2008, por ocasião dos 45 anos do assassinato do deputado.
— O Marechal atendeu a ordens superiores. Os adversários de nosso pai estavam com muita raiva — afirmou Suzana, na ocasião.
O principal motivo, conforme argumentou, seria uma reaproximação entre Kliemann e o então vice-prefeito de Santa Cruz do Sul, Orlando Baumhardt, do PTB. Ambos eram concunhados — Orlando era casado com Elinor, irmã de Margit — mas mantiveram por muito tempo aparente distanciamento por conta das diferenças políticas. Uma aliança entre Kliemann e Baumhardt, um candidato muito popular, seria desastrosa para os antigos petebistas.
— Isso deixou os adversários políticos muito irritados — assegurou-me Suzana, que tinha 16 anos quando o pai foi assassinado, em entrevista em 2008.
Procuradas pela reportagem, as outras duas filhas de Margit e Euclydes preferiram não falar. Tinham respectivamente 12 e nove anos quando o pai foi morto.