Um caso rumoroso no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, em 1962, ganhou atenção dos jornais da época, como os extintos Última Hora, Diário de Notícias e Folha da Tarde, com manchetes quase diárias acerca das investigações. Margit Kliemann foi encontrada morta pelo marido, o deputado estadual Euclydes Nicolau Kliemann, na casa onde viviam. No ano seguinte, o parlamentar também foi assassinado durante um programa de rádio em Santa Cruz do Sul — um adversário político foi condenado pelo crime.
Como observa o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil no prefácio do livro Caso Kliemann: A História de uma Tragédia (2010), de Celito de Grandi, jornalista falecido em 2014, a morte de Margit não foi um crime qualquer, "praticado nas sombras de uma ponte". O mistério em torno da morte de uma mulher bonita, de elevada posição social — integrante do high society, como se dizia — e esposa de um dos políticos gaúchos mais proeminentes (com credenciais para se candidatar, no futuro, a governador do Estado) era pão quente para uma imprensa que não se guiava pelos preceitos éticos de hoje.
Foi Kliemann quem encontrou o corpo da esposa, rodeado por uma poça de sangue, aos pés da escadaria do casarão da Rua Barão de Santo Ângelo, na tarde chuvosa de 20 de junho de 1962. Naquele dia ambos completavam 18 anos de casados e planejavam viajar à noite à cidade natal, Santa Cruz do Sul, onde as três filhas aguardavam. Como a chuva não dava trégua, Kliemann achou mais prudente deixar a viagem para o dia seguinte e aceitou o convite para jantar na casa do irmão, Lauro, que também residia na Capital.
Em seu depoimento à polícia, Kliemann relatou que estranhara o silêncio de Margit, que não atendia ao telefone, e dera início a uma romaria pelos endereços de parentes e amigos, em Porto Alegre. Por fim, decidiu procurá-la em casa. Lauro, que o esperava no carro, entrou logo a seguir e testemunhou o desespero do irmão, que chorava agarrado ao cadáver. Tratou então de dar alguns telefonemas e, antes mesmo que a polícia tivesse chegado, o casarão já estava repleto de políticos e curiosos, contaminando a cena do crime. Até o governador Leonel Brizola esteve no local, acompanhado da esposa, Neusa, que passou mal.
Kliemann virou o principal suspeito da polícia, em parte porque apresentou um álibi bom demais para ser verdade. Seguindo um conselho do pai, o empresário João Nicolau Kliemann, o deputado se antecipou ao depoimento oficial rememorando e anotando todos os passos que dera no dia fatídico: a manhã de trabalho na Assembleia, o encontro às 11h com Margit na Rua da Praia, a visita de ambos à Casa Masson e depois à Casa das Lãs, no bairro Navegantes, o almoço na Adega Espanhola, a volta do casal para a residência no Moinhos de Vento (onde comeram bergamotas), a rotina de atividades parlamentares à tarde e, ainda, incursões de Kliemann a um relojoeiro e a uma floricultura, tudo com grande precisão de horários.
A riqueza de detalhes causou estranheza ao veterano delegado Julio Moraes, titular da Delegacia de Segurança Pessoal, a DSP. Famoso por já ter desvendado crimes graves, Moraes não conseguia entender como um homem que recém perdera a esposa de forma tão brutal tivesse nervos e capacidade de lembrar de informações tão precisas. Além disso, a experiência o ensinara que, quando uma mulher morre, o marido é sempre o provável autor.
A Dama de Vermelho
Na edição de 23 de junho, o Diário de Notícias trazia um "furo de reportagem" para ampliar o clima de mistério em torno do caso: a Dama de Vermelho. Testemunhas teriam visto uma jovem mulher, trajando elegante vestido vermelho, deixando o casarão da Barão de Santo Ângelo na tarde do assassinato. Ela teria embarcado em um auto de praça em direção ao centro da cidade, onde desaparecera. O chofer do táxi, conhecido como Antônio Espanhol, chegou a ser interrogado e confirmara a história à polícia. Dias depois, segundo texto irônico do próprio Diário, passou a "sofrer de amnésia" — já não lembrava de nada.
Não se sabe se o delegado Moraes engoliu a história da Dama de Vermelho, ou se fingiu ter acreditado para dissimular os rumos da investigação. Fato é que chegou a intimá-la publicamente, pelos jornais, e direcionou agentes a tentar localizá-la. Nos botequins e cafés da Capital, o assunto trazido pelos jornais dominava as rodas de conversa. Todos tinham suposições acerca de quem poderia ser, dentre as mulheres das altas rodas, a Dama de Vermelho. Um esforço inócuo: ela nunca apareceu e, ao que tudo indica, nem sequer existiu.
Diferentemente foi o ingresso de Madame Ninon, a cartomante, no caso. Essa, sim, era uma personagem de carne e osso — ainda que envolta por uma aura mística. Dona de um bazar de artigos esotéricos na Rua Lima e Silva, na Cidade Baixa, e famosa por deter poderes mediúnicos, ela escreveu uma carta à polícia onde afirmava ter revelações sobre a morte de Margit.
O bilhete era anônimo, mas não tardou até que a autoria fosse descoberta pelo comissário Alfredo Vitorino Vargas, um investigador da DSP que ostentava o apelido de Sherlock, tanto em razão de sua perspicácia quando pelo hábito do cachimbo.
Chamada a depor, Madame Ninon jurou ter atendido Margit em uma "consulta" dias antes do crime. Afirmou que a esposa do deputado estava "amedrontada em face de um grave problema que a afligia e tinha medo de ser assassinada". O Diário de Notícias explorou aquela nova faceta do caso, assegurando que a "médium esotérica" teria "a chave do mistério". Já o Última Hora encarou Ninon com ceticismo. Em um texto, disse que o aparecimento da cartomante adicionou ao caso Kliemann "um ingrediente completamente novo: bola de cristal".
Assim como a Dama de Vermelho, Madame Ninon foi gradativamente sendo esquecida do noticiário, após desperdiçar tempo da polícia. Nestas idas e vindas atrás destes e de outros suspeitos improváveis, Moraes foi perdendo o foco da investigação. Até que, em março de 1965, a DSP emitiu nota inocentando Euclydes Kliemann da morte de Margit. Mas então já era tarde — o deputado estava morto havia mais de um ano e seu assassino, prestes a ser julgado.