A quadra esportiva do ginásio do Corinthians Sport Club, em Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, onde tantas vezes o deputado estadual Euclydes Kliemann jogara basquete durante a juventude, estava apinhada de cadeiras ocupadas naquela madrugada de 2 de junho de 1965. No local, o vereador Floriano Peixoto Karan Menezes, mais conhecido pelo apelido de Marechal, seria julgado pelo homicídio de Kliemann, seu adversário político, ocorrido dois anos antes (ouça acima o momento em que o parlamentar é morto no estúdio).
No Júri, pode-se perceber, nitidamente, uma divisão na plateia: de um lado, simpatizantes do PTB de Marechal, de outro, do PSD de Kliemann. O julgamento de Marechal havia começado no dia anterior. Quem está falando naquele momento é um jovem advogado natural de Caxias do Sul, na Serra, também deputado estadual em primeiro mandato pelo PTB. Assim como em seus discursos na Assembleia, demonstra eloquência, gesticula, alterna o tom de voz. Conduz um espetáculo de oratória, para deleite da plateia. Seu nome é Pedro Simon.
Após o golpe de 1964 e o exílio de Jango no Uruguai, houve uma debandada dos advogados encarregados da defesa de Marechal. Criminalistas sondados para substituí-los não se interessaram nem em apresentar orçamento de honorários. Em tempos de ditadura, ninguém queria ser o representante de um homem ligado a sigla de esquerda que havia assassinado um político conservador. Apenas Simon topou, a pedido do partido.
A fim de se preparar para o júri de Marechal, Simon leu e releu a miscelânea de papéis avulsos que compunham o inquérito do assassinato de Margit Kliemann, esposa de Euclydes Kliemann, assassinada um ano antes dele.
Simon sabia que as suspeitas levantadas contra o deputado foram o estopim do desfecho trágico no estúdio da Rádio Santa Cruz, e não haveria como fugir desse tema diante dos jurados. A análise do caso acendeu em Simon uma convicção que mantém até hoje.
— Tenho certeza de que o Kliemann não teve nada a ver com a morte da esposa — assegura o ex-senador, que conversou com a reportagem na última segunda-feira (21).
— O delegado (Julio Moraes) me procurou e entregou o inquérito. Ele tinha convicção absoluta de que o Kliemann era o culpado. Mas naquele inquérito não tinha nada para dizer que foi ele.
Por outro lado, Simon também rechaça a hipótese de que Kliemann tenha sido assassinado na esteira de uma conspiração política:
— Conheci os dois lados desta história. O Marechal era uma pessoa simples, pacata, não se meteria a fazer uma coisa dessas.
Para o ex-senador, Marechal ano agiu por impulso, assustado ante a invasão repentina de Kliemann ao estúdio:
— Marechal não quis dizer que o Kliemann era o assassino. Depois das acusações que o Kliemann tinha feito na rádio, Marechal quis dizer que, assim como falavam do PTB, também falavam do Kliemann. Mas o Kliemann estava muito irritado, muito abalado com a morte da esposa e com as acusações do delegado, estava enlouquecido. Só sei que, quando Marechal viu o Kliemann entrando, atirou. Foi um drama tremendo.
Foi esse argumento que Simon levou para o ginásio do Corinthians naquele início de junho de 1965. Diante dos jurados, derramou-se em elogios a Kliemann. Sabia que a estratégia de bater na vítima, tão empregada pela defesa de réus nos tribunais, não colaria em Santa Cruz do Sul.
— A culpa não é do Kliemann, a culpa não é do Marechal. A culpa é dessa mídia que massacrou e deixou Kliemann com os nervos à flor da pele — concluiu, no tribunal, arrancando aplausos de ambos os lados da plateia.
— Até familiares do Kliemann vieram me abraçar depois — relembra o ex-senador, hoje com 93 anos.
A retórica também conquistou a maioria dos jurados, que acolheu em placar apertado a tese defensiva de excesso culposo. A sentença minúscula, de um ano e meio, colocava Marechal em liberdade, dado que já aguardava o julgamento preso. Contudo, o Ministério Público (MP) recorreu alegando que o resultado contrariava a prova dos autos e o Tribunal de Justiça (TJ) acolheu o recurso, marcando novo júri para 10 de dezembro de 1965.
No segundo julgamento, Simon não foi tão feliz e Marechal acabou condenado a seis anos e meio por homicídio simples, em novo placar apertado. O vereador teria de continuar preso para o cumprimento da sentença. Na Cadeia Municipal de Santa Cruz, gradativamente foi se tornando uma liderança positiva entre os detentos. Estava sempre pronto para uma boa charla, acalmava os mais exaltados, aconselhava os mais jovens a mudar de vida. Logo passou a trabalhar na contabilidade do presídio e como professor dos detentos, chegando a alfabetizar muitos. Conversava sobre tudo, menos sobre a morte de Kliemann.
Após cumprir a pena, Marechal, que já fora gerente da Caixa Econômica Federal em Santa Cruz do Sul, transferiu-se para Guaíba, onde passou a trabalhar na contabilidade de uma empresa arrozeira. Levou consigo a esposa e os seis filhos.
Dizia-se que a família preferiu deixar Santa Cruz do Sul para evitar constrangimentos. Após 10 anos, Floriano se aposentou e rumou com a família para ainda mais longe, São José, em Santa Catarina. Lá, o casal teve mais um filho. Marechal morreu aos 80 anos, em 8 de abril de 2004, vítima de tumor cerebral.
Se ele fora mesmo peça de uma conspiração política, nunca se comprovou. O fato é que o tiro disparado nos estúdios da Rádio Santa Cruz, há quase 60 anos, mais do que impactar o cenário político gaúcho, desgraçou duas famílias: a da vítima e a do autor.