Nos próximos meses, a antiga estrutura do Presídio Central terá deixado de existir quase completamente. Restam de pé apenas três pavilhões, dois dos quais ainda serão demolidos para dar espaço à nova cadeia, que abrigará quase 2 mil presos.
A reportagem teve acesso a um deles, por onde circulou na última quinta-feira (6). Desocupado em maio, o pavilhão A ainda guarda objetos e características marcantes do presídio que já foi considerado o pior do país e um dos piores da América Latina: colchões, cobertas e outros objetos revirados pela galeria, muita sujeira, paredes depredadas e cheiro forte.
Da antiga estrutura do Central, composta por 10 pavilhões, dois ainda estão à espera do momento em que serão derrubados, o A, visitado pela reportagem, e o B, que ainda abriga presos. Hoje, seguem no Central 792 detentos.
Também segue de pé o E, onde ficam setores administrativos do presídio e cerca de cem detentos que realizam trabalhos internos para remição da pena, ficando responsáveis por preparar refeições e fazer a limpeza, por exemplo. Esse local deve ser mantido, passando por uma reforma geral que é ainda estudada pelo governo.
Pavilhão A foi cenário de brigas e rachas entre grupos
A segunda galeria do pavilhão A, no andar mais alto, foi a primeira a reunir grupo de presos com base no território onde moravam antes do cárcere, na Vila Conceição — os demais espaços eram divididos entre facções que atuavam em várias partes da cidade.
Depois, esse grupo também passou a se identificar como facção, atuando no tráfico de drogas no bairro Partenon, na zona leste da cidade, e tendo Paulo Ricardo Santos da Silva, o Paulão da Conceição, apontado como líder.
Mais tarde, quando ele perdeu o comando do grupo, os presos que permaneceram fiéis a Paulão tiveram de deixar a galeria.
— À época, isso foi uma comprovação, dentro do presídio, da ligação direta entre as galerias e as facções do lado de fora — lembra o jornalista, diretor e roteirista Renato Dornelles.
Foi ali também que duas lideranças do tráfico, antes aliadas, protagonizaram racha. Em 2015, o traficante Cristiano Souza da Fonseca, o Teréu, que ficava na galeria, teria provocado presos do pavilhão B, ligados ao tráfico em um condomínio no bairro Santana e liderados por Alexandre Goulart Madeira, o Xandi. Houve ameaças contra Teréu e ele foi transferido para a Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). Dois dias depois, ele foi morto no refeitório da unidade.
Um dos mais emblemáticos episódios registrados na segunda galeria do A aconteceu pouco depois da morte de João Carlos da Silva Trindade, o Colete. Ele foi executado a tiros dentro de unidade prisional, em 2017.
Colete seria o elo entre os presos do grupo da Conceição, que comandava aquele andar, e criminosos que ocupavam algumas vagas na mesma galeria — estes, ligados a quadrilha originária da Vila Cruzeiro, na Capital.
Após o assassinato de Colete, os presos ligados ao grupo da Zona Sul foram expulsos da galeria. Naquele mês de agosto, 164 presos passaram a dormir em um dos pátios da cadeia. Passaram meses comendo e dormindo em cabanas improvisadas.
Do lado de fora, a ameaça de uma guerra do tráfico se tornava cada vez mais concreta. Enquanto isso, forças de segurança se reuniam em busca de solução para o impasse dos detentos que “não convivem com mais ninguém”, como definiu a juíza da Vara de Execuções Criminais da Capital, Sonáli da Cruz Zluhan, à época. Os presos, segundo ela, queriam uma galeria própria, mas não havia espaços vagos no presídio.
Novo Central deve ser finalizado em janeiro de 2024
Iniciada em julho de 2022, há um ano, a obra da nova cadeia tem 50% dos trabalhos concluídos. O novo Central vai se dividir em nove módulos, que somam 1.884 vagas em 240 celas. A entrega da nova cadeia está prevista para janeiro de 2024
A obra exigiu investimento total de R$ 116 milhões, sendo que metade disso já foi paga à Verdi Sistemas Construtivos, que conduz a construção. Segundo o governo, o repasse de verba é realizado conforme o andamento das obras.
Diariamente, cerca de 60 pessoas trabalham nas novas estruturas. Com uma série de medidas adotadas, a construção ocorre enquanto o presídio opera normalmente, destaca o titular da Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo (SSPS), secretário Luiz Henrique Viana:
— O desafio de realizar essa obra com o estabelecimento em funcionamento exige um plano de trabalho complexo, muito bem pensado e que possibilitou, até agora, o andamento da construção sem intercorrências na segurança do local.
— Na nova Cadeia Pública, os apenados ficarão em celas com capacidade de até oito pessoas e usarão uniformes. A estrutura também garantirá maior segurança aos servidores penitenciários, porque eles farão todo o controle de operação e abertura das portas isolados dos detentos, em passarelas sobre o corredor das celas — acrescenta Viana.
Resolver problema do Central é plano antigo
Essa não é a primeira gestão no Estado que tenta resolver o problema do Central, que já foi considerado o pior presídio do país em uma CPI do Congresso Nacional, em 2009. À época, o grupo definiu a casa prisional como uma “masmorra”, um “inferno”, com presos controlando acesso às galerias e vivendo em meio a lixo e esgoto.
Em 2014, o então governador Tarso Genro anunciou a demolição do pavilhão C, um dos mais problemáticos. A obra, no entanto, foi interrompida logo depois de iniciada. Uma mudança drástica na unidade prisional é esperada com a nova prisão.
— A readequação do local representa muito mais do que a inauguração de uma unidade prisional, é uma nova página na história do Rio Grande do Sul, que envolve mudança significativa de paradigma. Deixaremos para trás tudo o que o antigo Presídio Central representava, encerrando esse capítulo emblemático do sistema prisional gaúcho — explica o secretário de Sistemas Penal e Socioeducativo.
Outra importante mudança prevista é a troca de gestão da cadeia, que desde 1995 é feita pela Brigada Militar (BM). A corporação foi colocada na função de forma provisória, na tentativa de amenizar eventos violentos registrados na época, como fugas e motins, e permaneceu por quase três décadas.
Com a conclusão das obras do novo Central, passarão a garantir a segurança do local, de forma gradual, policiais penais. Alguns deles já atuam nas torres no entorno da cadeia.
Presídio abrigava 38 pessoas no lugar de oito
Tema de estudos e de documentário, o Central ficou nacionalmente conhecido pelas condições em que abrigava seus presos. Com as celas superlotadas, abrigando 38 pessoas onde cabiam oito, os presos se aglomeravam pelos corredores, onde colocavam colchões enfileirados. Conviviam com esgoto a céu aberto, em meio a brigas, rebeliões e mortes. Um dos recordes de superlotação foi no início de 2011, quando o número de presos chegou a 5,2 mil, enquanto o total de vagas era de 2.069.
Entre 1998 e 2017, o então promotor Gilmar Bortolotto era responsável pela fiscalização dos presídios da Região Metropolitana, e circulava com frequência pelo Central. Hoje procurador, ele relembra que a busca por melhorias no espaço costumavam ser barradas por questões financeiras do Estado.
— Um presídio, mesmo em boas condições, sempre é um local complicado de se administrar. Nesse caso, as condições estruturais sempre foram muito precárias. Havia esgoto a céu aberto, as instalações hidráulicas e elétricas não davam conta da demanda de um estabelecimento concebido para abrigar menos da metade dos presos que ali estavam. Tivemos muitas mortes, uma parte em razão de homicídios e outra decorrente de doenças de todos os tipos, porque o atendimento à saúde também era muito precário. Os tumulto ocorriam ao menos duas vezes por semana, tinham motins, incêndio — lembra Bortolotto.
Com o passar dos anos, conflitos entre guardas e presos diminuíram, assim como rebeliões e mortes dentro do Central, registradas com frequência nos anos 1980 e 1990. Foi o início de uma fase mais prejudicial para as ruas, no entanto:
— Ali pelos anos 2000, foi se consolidando uma espécie de cartel, porque as facções lotearam as galerias e começaram a lucrar com isso. Quanto mais presos ali dentro, quanto mais alta a superlotação, mais elevado o lucro dos grupos criminosos com os “presos menores”, que eram extorquidos. Muitos também acabavam virando novos soldados das facções. Além disso, em razão de muitas ordens dadas por lideranças lá de dentro, aumentou a violência nas ruas — explica Dornelles.
O jornalista é um dos responsáveis pelo documentário Central, que retratou como funcionava o presídio por dentro e o controle das galerias por parte dos presos. Com câmeras colocadas nas mãos de presos (com o aval da Justiça), o trabalho foi feito a partir de imagens captadas por eles. Para além da mudança na estrutura física, o jornalista destaca que é preciso manter investimentos no local, para que não volte a ser motivo de vergonha:
— Tanto o Central quanto o Carandiru (em São Paulo) nasceram como prisões modelo. No entanto, ao longo do tempo, a falta de investimentos e o descaso por parte do Estado, transformaram essas casas em locais degradáveis. É preciso manter os esforços para que a história não se repita. O Estado também precisa recuperar o controle sobre a cadeia, que há muitos anos estava na mão de facções. Precisa colocar os apenados em celas novamente e dar condições mais dignas. Isso é pela segurança deles, dos agentes e também da sociedade — pontua Dornelles.
Além de uma melhor estrutura física, especialistas alertam que também é preciso criar uma nova cultura dentro do local e investir em alternativas de ressocialização. O objetivo é indicar caminhos para que presos que deixam as casas prisionais não reincidam e voltem à detenção. De acordo com a Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo (SSPS), o Estado oferece atividades para a ressocialização de presos, tanto de ensino, quanto de trabalho, e estuda novas alternativas constantemente.