Uma decisão da Justiça gaúcha revogou a prisão preventiva de Anderson Fernandes Lemos, 40 anos, homem que baleou uma policial civil com um tiro na cabeça em abril do ano passado, durante uma operação em Rio Grande, no sul do Estado. Na ocasião, Laline Almeida Larratea, 36 anos, foi atingida enquanto participava de uma ação de combate ao tráfico de drogas, em que Lemos era um dos alvos. Na decisão da 1ª Vara Criminal da Comarca de Rio Grande, a juíza Paula Cardoso Esteves entende que não houve intenção, por parte do réu, de matar a servidora, apenas resistência à abordagem.
A decisão é de 28 de abril deste ano, mas gerou repercussão e indignação por parte de integrantes da Polícia Civil nesta sexta-feira (23). O Ministério Público do Estado (MP-RS) afirmou que já recorreu da decisão — na denúncia, a instituição acusou o réu por seis tentativas de homicídio, contra Laline e demais policiais.
Apesar de ter sido solto neste processo, o homem segue preso por envolvimento em outros crimes, segundo a Polícia Civil.
No entendimento da juíza, a ação do réu caracteriza resistência. Na ocasião, as equipes da polícia foram até a casa do homem para cumprir mandado de prisão contra ele e de busca e apreensão em sua residência. Ao perceber que um grupo de pessoas adentrava a residência, o réu passou a atirar.
Em depoimento no processo, ele admitiu que efetuou disparos, mas disse que não percebeu que se tratavam de policiais. Sustentou que vinha recebendo ameaças de um grupo criminoso da região, que tentaria tomar sua casa, e por isso revidou.
"Não se olvida, evidentemente, a lamentável gravidade do resultado ocorrido no caso em concreto, em que a policial Laline restou gravemente ferida ante a resistência do acusado. Tal, entrementes, não pode justificar o indevido alargamento/desvirtuamento da figura do dolo eventual; assim, em prestígio à lei processual, que estabelece o procedimento bifásico do Tribunal do Júri, a decisão do juiz togado deve servir como filtro ao excesso acusatório, de modo a impedir a submissão a julgamento popular dos casos em que inexistam elementos a sustentar a prática do crime doloso contra a vida", pontua a juíza.
Dessa forma, o réu não foi submetido a júri pela magistrada, onde são julgados crimes dolosos contra a vida, sejam tentados ou consumados. Assim, ele passa a responder por resistência.
"Não há, à vista disso, e pelas razões expostas, como submeter ao plenário popular a hipótese ora analisada, tendo em vista a manifesta insuficiência de elementos a indicarem que o réu, ao efetuar disparos de arma de fogo contra os agentes públicos, tenha agido com o dolo de matá-los e não de apenas resistir à abordagem", finaliza, revogando a prisão preventiva.
Por outro lado, a Polícia Civil sustenta que as equipes que realizaram a ação seguiram o protocolo previsto para abordagens do tipo: estavam identificadas, com coletes e viaturas, ao chegarem à casa do réu, e deram comando de voz anunciando a entrada de policiais.
Procurado pela reportagem, o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS) se manifestou em nota sobre a determinação. "A decisão foi fundamentada no entendimento de que, no caso, não foram apresentados elementos a sustentar a prática de crime doloso contra a vida, a ponto de autorizar a submissão do feito ao júri. E com o novo enquadramento penal para este fato, a pena prevista não justificaria a manutenção da prisão."
O TJ-RS pontua ainda que houve recurso da decisão por parte do MP, e que o processo poderá ser apreciado por desembargadores do tribunal, "de acordo com os trâmites legais".
"Indignação e tristeza"
A decisão por desclassificar o crime para um delito de menor potencial ofensivo foi recebida com preocupação, revolta e tristeza por policiais civis gaúchos e forças de segurança do Estado.
O chefe da Polícia Civil, delegado Fernando Sodré, afirma que respeita a decisão da Justiça, mas que ela pode abrir precedentes que colocam em risco a vida de policiais. O caso precisa ser "melhor analisado", afirma.
— Esse entendimento nos preocupa porque desconsidera uma ação violenta contra policiais que estão em exercício de seu trabalho. Significa um risco à vida dos agentes, e até mesmo ao combate ao crime. Se esse entendimento se fortalecer, teremos sérios problemas ao trabalho da polícia e à vida dos servidores. Claramente a pessoa que efetua disparos está, no mínimo, assumindo um risco de matar, o que leva a, no mínimo, um dolo eventual — pontua Sodré.
À frente da pasta de Segurança Pública do Estado (SSP/RS), o secretário Sandro Caron também se manifestou, por meio de nota:
"Respeitamos a autonomia do Poder Judiciário, contudo consideramos esta decisão preocupante, uma vez que houve um claro atentado à vida dos policiais que cumpriam uma ordem judicial em Rio Grande. Inclusive, durante a ação, uma policial civil foi baleada na cabeça. Reiteramos que todo atentado contra a vida de um policial também é um atentado contra o Estado".
Após ser baleada, Laline passou cerca de um mês internada em um hospital, 15 deles na UTI, e chegou a entrar em coma. Segundo a Polícia Civil, o disparo atingiu uma parte do cérebro que é responsável por processar memórias e sentimentos. Em depoimento no processo, a policial contou que perdeu memórias, inclusive experiências vividas com a filha, de três anos. Em razão disso, relata que se afastou "bastante" da criança e do marido, também policial civil — o companheiro também atuava na operação no dia em que a vítima foi baleada, mas cumpria ordens judiciais em outro local do município.
Por decisão médica e da família, a policial não retomou as atividades, segundo a PC.
Decisão gera "insegurança", diz Ministério Público
O Ministério Público do Estado afirmou que entrou com recurso contra a decisão, na tentativa de fazer com que o réu responda pelas seis tentativas de crime doloso contra a vida, conforme foi denunciado, no Tribunal do Júri.
O coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias do Tribunal do Júri, Marcelo Tubino, diz que o MP respeita a decisão, mas a instituição que "discorda veementemente por ter convicção de que houve dolo nas tentativas de homicídio".
Em relação a Laline, o MP destacou que a policial lida com "sequelas neurológicas fazendo com que siga afastada do trabalho e trazem grande sofrimento a ela, família, amigos e colegas policiais".
"A insegurança gerada pela presente decisão, que coloca em risco não só os agentes da Segurança Pública como o próprio Sistema de Persecução Penal, é motivo de preocupação do MP", disse Tubino em nota.
O texto também manifesta solidariedade aos policiais civis.
Contraponto
A advogada Julieth Gonçalves dos Santos, que atende Lemos, enviou nota à reportagem. Veja a íntegra do texto:
"Pelo contrário, a decisão da Juíza Paula Cardoso da 1ª VC foi a assertiva. Desde a primeira oportunidade em que teve de se manifestar o acusado falou a verdade, sendo categórico disse: '(…) quantos aos motivos pelos quais o levaram a reagir com disparos durante a ação policial, relata que achou que se tratava de uma execução a qual foi vítima em três tentativas ocorridas dias antes da chegada da Pol. Civil ir em sua residência. Somente fez os disparos pois acreditava que eram as mesmas pessoas que atentaram contra sua vida e de seus familiares. Que sobre esses eventos anteriores não chegou a fazer o devido registro de ocorrência policial, pois temia sair de casa e ser morto, pois é bastante conhecido nos arredores e alguém poderia estar lhe vigiando'.
No mesmo sentido do depoimento do acusado é a prova pericial do IGP, que comprava que a residência possuía inúmeros disparos de arma de fogo. Em uma das oportunidades, sua filha foi baleada na coluna e há prova pericial no tocante à lesão. Cumpre ressaltar que, já preso, cerca de 30 dias após o fato, sua casa foi alvo novamente de criminosos, com mais de 30 disparos em direção ao imóvel.
No dia dos fatos, de acordo com o depoimento dos Pol. Civis no momento do ocorrido, tão logo o réu tomou conhecimento que eram policiais civis, se rendeu, dispensou a arma que ainda possui 6 munições intactas e jogou-se ao solo sendo imediatamente preso.
A testemunha de Defesa, o Pol. Civil ouvido em juízo, declarou já ter prendido o réu pela primeira vez em setembro de 2016, depois janeiro de 2021 - ambas por tráfico de drogas - e em setembro de 2021 por receptação. Afirmou que: "(…) a prisão por receptação ocorreu em contexto de cumprimento de mandado de busca e apreensão; a de setembro de 2021 em uma abordagem na entrada no Cassino; e, em 2016, não se recordou das circunstâncias. Referiu que o acusado respondeu aos comandos policiais quando foi preso e não reagiu'.
No dia dos acontecimentos, o acusado, desde da sede policial até o interrogatório frente ao juízo, apresentou versão dos fatos idêntica à dos policiais que cumpriram mandado de busca e apreensão. Confessou que efetuou disparos, todavia, não possuía ciência que se tratavam de policiais em cumprimento de MBA, tanto é que na ocasião restou apreendida tão comente a arma de fogo que portava e nada mais de ilícito, diante disso, não havia justificativa para atentar contra a vida de policiais civis no exercício de sua função, pelo contrário, ouvido em juízo, um dos Pol. Civil, testemunha de acusação, o mesmo foi categórico ao referir: " (…) Que já cumpriram diversas vezes Mandados de Busca e Apreensão em oportunidades anteriores, já sendo conhecido da equipe, que o acusado não reagiu em abordagens anteriores'.
Importante ressaltar que ao final do seu interrogatório em juízo o réu pediu perdão à vítima, pois ela era uma inocente que estava cumprindo o papel dela e não merecia ter passado por isso, então pediu encarecidamente desculpa por tudo e que caso ela não o perdoasse o mesmo a compreenderia, mais uma vez, encerrou informando que não tinha conhecimento que eram policiais no momento que ingressaram no pátio de sua residência e que somente atirou pois tinha certeza que eram os mesmos criminosos que atentaram contra a sua vida e de familiares".
Ajuris também se manifesta
Em nota divulgado no sábado (24), a Associação dos Juízes do RS (AJURIS) ressaltou que "acompanha os desdobramentos da decisão judicial envolvendo a concessão de liberdade para um acusado de ter atirado contra agentes policiais durante uma operação da corporação, na cidade de Rio Grande". A entidade pediu equilíbrio nas críticas a juíza do caso, destacando que "não é aceitável que o episódio ultrapasse os autos do processo, que ainda tramita, e sirva como instrumento de desqualificação das magistradas e magistrados gaúchos, não raro, visando atingir a independência judicial".
"A AJURIS reitera o irrestrito respeito às instituições que integram o Sistema de Justiça e a permanente abertura ao diálogo, mas reafirma que não deixará de adotar todas as medidas cabíveis em relação à violação dos direitos das magistradas e magistrados gaúchos", encerra o texto, que é assinado pelo presidente da entidade, Cláudio Martinewski.