Dezesseis anos após José Dougokenski, 32, ser encontrado morto dentro de casa, na área rural de Farroupilha, na Serra, nova investigação encontrou indícios de que o agricultor pode ter sido assassinado. Na época, o entendimento foi de que se tratava de um suicídio por enforcamento. No entanto, em dezembro do ano passado, por determinação judicial, após novas evidências apontadas por uma perícia particular, a apuração foi reaberta. Depoimentos foram ouvidos, além de diligências e perícias realizadas nos últimos meses.
Para a Polícia Civil, a principal suspeita do homicídio é Alexandra Salete Dougokenski, 35 anos, a mesma mulher condenada por matar o filho Rafael Mateus Winques, 11, em Planalto, no norte do Estado. No entanto, como ela tinha 19 anos em fevereiro de 2007, quando aconteceu a morte do marido — pai do outro filho dela —, não chegou a ser indiciada no inquérito encaminhado à Justiça nesta quinta-feira (13).
A lei prevê que, para menores de 21 anos, o prazo de prescrição de crimes — que seria de 20 anos se a pena máxima privativa de liberdade prevista para o crime é superior a 12 anos — é reduzido pela metade. Ou seja, neste contexto, o delito teria prescrito 10 anos depois, em fevereiro de 2017.
À frente da investigação, o delegado Éderson Bilhan, de Farroupilha, afirma que se trata de uma apuração complexa, por ser realizada tanto tempo depois do fato. Após ouvir vizinhos, policiais militares, familiares, interrogar a própria Alexandra e analisar novas perícias, o policial concluiu que há evidências de que tenha ocorrido um homicídio.
— Ela só não será indiciada em virtude da prescrição. Apesar de ter prova da materialidade e indícios, não vai ocorrer o indiciamento — explica o delegado.
Ainda segundo Bilhan, com a constatação da prescrição, o que só aconteceu durante o andamento das novas diligências, a polícia decidiu finalizar as investigações. Em razão disso, não chegou a ser solicitada a reprodução simulada dos fatos, popularmente conhecida como reconstituição.
No relatório encaminhado à Justiça, o delegado afirma que concluiu que a materialidade está evidente e que há indícios de autoria do crime de homicídio, mas que deixou de indiciar Alexandra em razão dos indicativos da prescrição. Agora, cabe ao Ministério Público se manifestar sobre o caso e ao Judiciário determinar o desfecho.
Que indícios há contra Alexandra?
As novas investigações se baseiam em três evidências: testemunhais, periciais e semelhanças entre a morte do agricultor e o assassinato do menino Rafael. O garoto foi encontrado morto em maio de 2020, em Planalto, após a própria Alexandra indicar o local onde estava o corpo do filho, dentro de uma caixa de papelão. Uma corda de varal foi usada para asfixiar o garoto até a morte. Em janeiro deste ano, a mãe foi condenada a 30 anos e dois meses de reclusão e mais seis meses de detenção pelo crime.
A defesa dela ingressou com recurso para tentar anular o júri ou reduzir a pena, caso a condenação seja mantida. O Ministério Público (MP) também recorreu, buscando aumentar o tempo da pena.
Quando foi ouvida em 2007, após a morte de José, Alexandra narrou que o marido estava embriagado e que, depois de ouvir um barulho vindo do quarto, ela encontrou o corpo dele pendurado por uma corda de varal azul, presa numa viga no teto. Descreveu que, para socorrê-lo, subiu na cama e cortou a corda, mas que ele já estava morto.
Com a reabertura do caso, ela foi ouvida mais uma vez. Novamente, sustentou que o marido se suicidou. Mas o relato de Alexandra, segundo o delegado, trouxe alguns novos pontos: o fato de que o marido estava totalmente suspenso e de que ela não movimentou o corpo de lugar. Essas duas informações, conforme Bilhan, foram consideradas pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP) como incompatíveis com o cenário encontrado.
Uma perícia, comparando imagens do crime e a versão apresentada por Alexandra, foi realizada. A conclusão foi de que o sulco no pescoço da vítima deveria ter aparência oblíqua (inclinada). No entanto, no caso de José, a marca da corda era horizontal. Alexandra relatou que, após cortar a corda, o corpo do marido caiu no chão. Com base no local onde a corda foi localizada, segundo a perícia atual, o corpo deveria ter caído entre um roupeiro e uma das camas, mas José foi localizado entre duas camas.
— O corpo foi localizado numa posição que é incompatível com o local onde deveria estar. Ela falou cabalmente que não movimentou o corpo. As testemunhas que estavam no local falaram que não movimentaram o corpo, a policial militar que atendeu falou que ninguém movimentou o corpo — diz o delegado.
Outro ponto considerado pela investigação foram as semelhanças entre a morte de José e o assassinato do menino Rafael. Alguns pontos despertaram a atenção da polícia, como a morte por asfixia, com uma corda de nylon no pescoço. A única diferença entre as cordas usadas era a cor, no caso do garoto uma verde e na de José uma azul. O nó usado também apresenta semelhanças, segundo o delegado. Para além disso, a polícia aponta como fatores em comum o fato de que as mortes aconteceram de madrugada, e a pessoa envolvida, no caso, Alexandra.
A investigação levou em conta ainda evidências testemunhais, como pessoas que estiveram no velório e relataram que a mulher apresentava comportamento frio. O pai de Rafael, o agricultor Rodrigo Winques, quando ouvido, também sustentou que a ex já teria afirmado ter matado José porque ele lhe incomodava e bebia.
Apesar de na época o caso ter sido concluído como suicídio, inclusive com perícia realizada pelo IGP, o delegado sustenta que o contexto e as informações disponíveis para a Polícia Civil naquele momento eram diferentes.
— Em 2007, tínhamos uma jovem de 19 anos, recém-casada, com um filho de três anos, nenhum histórico de crime. Chegando no local, foi encontrado o corpo caído, a corda no pescoço, e um pedaço de corda no caibro. Não tinha na época essa informação de que o corpo estava totalmente suspenso e nem que tinha sido removido ou não. Eles fizeram tudo o que deveria ser feito. A partir de 2020, é que surgem novos elementos a partir do fato em Planalto. Essas duas informações são importantíssimas e mudam a análise do caso — diz Bilhan.
Em depoimento, Alexandra Dougokenski nega assassinato de marido
Alexandra foi ouvida novamente em fevereiro deste ano no inquérito que apurou a morte do marido em fevereiro de 2007. Interrogatório conduzido pela Polícia Civil de Farroupilha, onde aconteceu o crime, durou cerca de 45 minutos. GZH teve acesso à integra do depoimento, conduzido pelo delegado Éderson Bilhan.
Alexandra manteve a mesma versão de negar o crime e sustentar que o marido havia tirado a própria vida. Durante o interrogatório, Alexandra alega, por diversas vezes, que começou a se relacionar cedo com José Dougokenski e que eles não possuíam bens materiais e recursos financeiros. Segundo a própria investigada, isso seria motivo para não matar o marido (assista ao vídeo acima).
Responsável pela defesa de Alexandra, o criminalista Jean Severo mantém a versão de que a cliente é inocente. O advogado afirmou ainda que alertou a polícia, após o novo depoimento dela, de que o caso estaria prescrito, em razão de ela ser menor de 21 anos na época.
— A Alexandra sempre negou a participação neste fato. Uma perícia antiga do IGP já tinha confirmado que havia ocorrido um suicídio. É só olhar as fotos que se percebe que ela não teria como levantar um homem daquele tamanho. Os indícios são fracos. Ela me deu certeza de que foi um suicídio, que ela não tinha nenhum motivo para matá-lo. Era até bom para ela. E assim se termina essa situação contra essa moça, que já está respondendo esse outro fato. Se coloca um fim nessa situação. E agora vamos focar só no julgamento da apelação do menino Rafael — afirma Severo.
Família diz que vai mover ação contra o Estado
Responsável por representar a família de José Dougokenski, a advogada Maura Leitzke afirma que pretende buscar uma indenização por danos morais do Estado do Rio Grande do Sul. Isso porque entende que a conclusão ocorrida agora já poderia ter sido apontada em 2007. Em seu entendimento, os únicos elementos novos envolvem a similaridade entre as mortes de José e de Rafael.
— Na verdade, foram revisitados os elementos da época. Em 2007, já poderia ter sido identificado isso. E se evitado esse constrangimento. O único elemento novo é um comparativo entre os dois crimes. Vamos mover uma ação de indenização por danos morais contra o Estado por essa negligência cometida na época — afirma.
A advogada diz ainda que a família pretende buscar em outras ações que Alexandra, por ser suspeita da morte, deixe de receber a pensão do ex-marido e não possa mais fazer uso do sobrenome dele. Maura alega que o nome Dougokenski ficou conhecido nacionalmente como ligado à morte do menino Rafael e que isso causa prejuízos aos familiares do agricultor. Segundo Maura, a mãe de José, que foi uma das envolvidas na busca pela reabertura do caso, acabou falecendo antes das novas conclusões do inquérito.
— A família não recebe com surpresa o resultado do inquérito. Era algo que vinha sendo buscado desde o início. O que a família sempre quis, desde 2007, era que tudo fosse investigado. Independente do reconhecimento ou não da prescrição, para a família já representa uma grande vitória. A família consegue depois de muitos anos o que sempre alegou desde o início — afirma a advogada.
A reabertura
Na noite de 25 de maio de 2020, ao ver na televisão a chamada para a reportagem que revelaria que Alexandra admitiu ter matado Rafael, a irmã de José, Helena Dougokenski, 43, ligou para a mãe, em Alpestre, no norte do Estado. Foi ali que a família do agricultor decidiu tentar mais uma vez reabrir a investigação sobre a morte de José. A confirmação do assassinato do menino com o uso de uma corda de varal — mesmo objeto encontrado no local da morte de José — fez família reviver a dor. Os familiares nunca tinham aceitado a versão do suicídio, que levou ao arquivamento do caso.
A família contratou uma perícia particular, que apontou para a possibilidade de simulação de suicídio. O pedido de desarquivamento do inquérito foi entregue pela advogada da família ao Ministério Público em outubro de 2020. Depois disso, o Ministério Público pediu que o inquérito fosse reaberto.
Em janeiro de 2021, atendendo a pedido do Ministério Público, o Tribunal de Justiça do Estado autorizou que fosse reaberta a investigação sobre a morte de José. Em dezembro do ano passado, a Justiça de Farroupilha determinou que a Polícia Civil realizasse as novas investigações, que tiveram início em janeiro.
O Ministério Público informou que recebeu o inquérito policial nesta quinta-feira e está analisando a documentação por meio do promotor de Justiça Evandro Lobato Kaltbach. Em nota, a instituição afirmou irá fazer a análise "com absoluta brevidade". Em 2021, diante de novos elementos "questionando eventuais falhas por parte das perícias oficiais, o MPRS entendeu que deveria ser feita uma análise mais acurada acerca do caso". No texto, o MP lembrou ainda que quando fez o pedido de desarquivamento do inquérito, o promotor de Justiça Ronaldo Lara Resende afirmou que "embora não se vislumbre, salvo melhor juízo, uma falha nos laudos periciais, o fato é que os peritos não examinaram o contexto que somente agora foi apresentado e é inquestionável: a capacidade de Alexandra - única ‘testemunha’ da morte de José – em cometer crimes cruéis, alterar o local dos delitos e, ainda, atuar, teatralmente, quando instada a falar sobre os eventos a que deu causa". No documento, o promotor enfatizou também que uma testemunha referiu, em juízo, durante o caso Rafael, que em determinada ocasião Alexandra confessou ter matado José.
Na época da tentativa de reabertura do caso, o IGP afirmou que o laudo produzido após a morte de José e a investigação da Polícia Civil convergiram para a conclusão de suicídio causado por asfixia mecânica. Porém, o instituto reconheceu que "a perícia de uma cena de crime é complexa e envolve análises de diferentes vestígios". GZH aguarda nova manifestação do IGP, após as conclusões da polícia.