Há pelo menos oito anos, um homem percorre estradas brasileiras carregando ilegalmente pássaros em condições degradantes. Jabutis e galos também. Ele já sofreu ao menos nove abordagens da Polícia Rodoviária Federal (PRF), além de registros feitos pelas polícias militares estaduais. Só no Rio Grande do Sul, foi flagrado três vezes pela PRF.
Pelo menos 1.042 animais já foram apreendidos com o homem — alguns, já estavam mortos no momento do flagrante. GZH apurou que Joelson Cardoso Durval reúne ocorrências policiais ou processos por crimes ambientais em cinco Estados: além do Rio Grande do Sul, Bahia, São Paulo, Pernambuco e Piauí.
A história do baiano Joelson, 50 anos, é um exemplo de quando o crime compensa. Quem afirma isso é o promotor Alexandre Saltz, da Promotoria de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre. Ele faz uma crítica direta à Lei de Crimes Ambientais, de 1998, que, ao prever pena branda para esse tipo de situação, permite uma série de benefícios ao suspeito, alimentando essa repetição criminosa.
Até ser processado e condenado — a uma pena de no máximo um ano e que, portanto, não o levará à prisão —, o suspeito tem duas possibilidades de benefícios no caminho. O primeiro é a transação penal, que é um acordo com o Ministério Público em que a pessoa recebe pena antecipada privativa de direito ou multa. Se os termos forem cumpridos, a punibilidade é extinta.
Depois, mesmo já tendo sido beneficiado com transação penal, se for novamente processado, o réu tem direito à suspensão condicional do processo. Neste caso, a suspensão é ofertada junto a denúncia, desde que o acusado preencha requisitos. O processo fica suspenso pelo prazo de dois a quatro anos. Se as condições tiverem sido cumpridas, depois desse prazo a punibilidade é declarada extinta.
A Lei de Crimes Ambientais sofreu modificação em 2020 e teve aumentada a punição para quem comete maus-tratos contra cães e gatos, o que impede a aplicação dos benefícios de transação e suspensão do processo. A pena, neste caso, é de dois a cinco anos de reclusão, multa e proibição da guarda do animal. Caso o crime resulte na morte do animal, a pena pode ser aumentada em até um terço.
Dessa forma, com sanção mais severa apenas para estes casos, a legislação criou um desequilíbrio na proteção aos animais, como se o bem-estar de cavalos ou pássaros, por exemplo, fosse menos importante do que o de cachorros e gatos.
O promotor Saltz destaca outra grande dificuldade para a responsabilização em casos como o de Joelson: a falta de um sistema nacional de informações sobre ocorrências policiais e até procedimentos judiciais. Até GZH procurar a Promotoria de Defesa do Meio Ambiente para saber o andamento de expedientes relacionados a Joelson no Rio Grande do Sul, o MP gaúcho desconhecia os flagrantes dele em outros Estados. GZH apurou as ocorrências no país com base em registros da Polícia Rodoviária Federal.
— Temos essa dificuldade da falta de um sistema nacional de informações em relação às ocorrências policiais. Para termos acesso aos antecedentes policiais ou judiciais de alguém em outro Estado, tem de fazer solicitação formal, não tem sistema com esse dado disponível, e isso leva tempo. Além disso, eu só vou fazer uma busca naquele Estado se eu souber ou tiver indicativo de que aquela pessoa tem algum antecedente naquele local. Se o acusado tiver sido beneficiado com uma transação penal na Bahia, por exemplo, não temos como saber. E a lei diz que ele não pode receber novamente o benefício em um período inferior a cinco anos ou se tiver descumprido as condições impostas — explica Saltz.
GZH apurou junto ao Ministério Público da Bahia que Joelson chegou a ter duas propostas de transação penal naquele Estado. Em um dos casos, a proposta dos promotores foi de que ele pagasse R$ 15 mil. Joelson, claro, não aceitou.
— É improvável que aceitasse, pois se ele chegar a ser condenado, a pena é de seis meses a um ano e provavelmente será substituída por penas restritivas de direitos. Também em razão da pena baixa, fatos semelhantes dificilmente podem ser enquadrados como organização criminosa, o que restringe as ferramentas legais para o combate ao tráfico de animais, um dos crimes mais lucrativos do mundo - diz a delegada Marina Goltz, da Delegacia do Meio Ambiente.
E Joelson, que declara atividade profissional de gesseiro e pintor e diz ter endereço na capital paulista, não para. GZH verificou que em 19 de outubro do ano passado ele sofreu nova abordagem, desta vez, pela Polícia Militar de Paulistana, no Piauí, transportando papagaios. Mais um crime para a lista ainda sem punição.
Histórico no RS
No Rio Grande do Sul, a primeira ocorrência envolvendo Joelson é de 14 de junho de 2020, quando a PRF abordou dois veículos no km 100 da BR-290, no bairro Farrapos, em Porto Alegre. No carro que Joelson dirigia foram encontrados 144 pássaros, divididos em quatro gaiolas, em condições degradantes, sem água e comida, conforme descrição dos policiais. Em outro veículo, estavam outros dois suspeitos. Conforme o trio, as aves eram da região de Pelotas, no sul do RS, e seriam levados para São Paulo. Um processo criminal referente ao fato tramita.
A abordagem de 2020 resultou no termo circunstanciado número 67, feito pela Polícia Civil. Encaminhado ao Judiciário, o caso passou a tramitar no 3º Juizado Especial Criminal. Em dezembro de 2020, laudo técnico do Centro de Triagem de Animais Silvestres de Porto Alegre foi concluído descrevendo a apreensão e atestando que o modo como estava sendo feito o transporte causou "elevado estresse" aos animais. Ou seja, configurado assim o crime de maus-tratos.
Joelson acabou denunciado por transportar animal silvestre sem autorização e por maus-tratos. O processo está na 9ª Vara Criminal de Porto Alegre. Junto à denúncia, houve proposta de suspensão condicional do processo. A audiência virtual para que ele aceitasse ou não as condições propostas pelo MP ocorreu em 25 de janeiro. Joelson aceitou.
As condições estipuladas para suspensão do processo por dois anos são: o comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, trimestralmente, para informar e justificar suas atividades (o que deve ser feito no fórum da cidade em que mora), a proibição de se ausentar da comarca onde reside por mais de 30 dias sem autorização do juiz e a reparação do dano ambiental, no valor de R$ 5 mil a ser pago em 24 prestações.
O mesmo termo circunstanciado de 2020, que é a origem deste processo, embasou a abertura de uma Notícia de Fato na Promotoria de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre para apurar danos ambientais decorrentes da conduta do trio. Diante do cenário, o promotor Alexandre Saltz entendeu ser necessária investigação aprofundada no âmbito criminal, por suspeita de existência de organização criminosa que trafica animais.
Com isso, a Notícia de Fato foi arquivada e o MP solicitou inquérito para a Polícia Civil, mais especificamente, à Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (Dema). Em outubro de 2021, o inquérito foi aberto. Em agosto de 2022, a delegacia enviou o inquérito para a Polícia Federal (PF), tomando como base previsão constitucional que diz que a PF tem competência para investigar crimes interestaduais. Na verdade, a competência da PF se justifica em casos em que ocorra apreensão de espécies ameaçadas de extinção, situação presente nas ocorrências de Joelson.
Mesmo com pendências na Justiça gaúcha, Joelson voltou a passar pelo Estado cometendo o mesmo tipo de crime. Em maio de 2022, foi flagrado na BR-101, km 87, em Osório. Joelson transportava em um Astra 240 pássaros. Mais uma vez, a PRF fez ocorrência pelos crimes previstos no artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais: "Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida". Mais um termo circunstanciado por crime ambiental foi feito pela Polícia Civil e enviado à Justiça de Osório.
Três meses depois, em agosto de 2022, Joelson foi novamente flagrado em Eldorado do Sul. Desta vez, carregava 559 pássaros — sendo seis já mortos — trazidos de Santana do Livramento com destino a Itajaí, em Santa Catarina. Ele declarou aos policiais ter sido contratado para entregar 18 galos de rinha na fronteira e para, na volta, transportar os pássaros para Santa Catarina. Novo termo circunstanciado foi feito pela polícia e enviado à Justiça.
Além dos expedientes que já tramitam na Justiça, o caso da apreensão de 2020 e mais as duas ocorrências de 2022 foram remetidos para a Delegacia de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da Polícia Federal, que abriu inquérito. A investigação está em andamento.
Contraponto
O que diz a defesa de Joelson Cardoso Durval
A Defensoria Pública do RS informou que seria ofertada suspensão condicional do processo a Joelson.
Outros Estados
- GZH apurou que na Bahia Joelson é réu em pelo menos dois processos. No primeiro, que começou em agosto de 2021, o MP ofereceu proposta de transação penal no valor de um salário mínimo, mas ainda não há resposta do réu sobre a oferta. Na segunda ação, de janeiro do ano passado, ocorreu audiência preliminar em agosto, quando foi oferecida a proposta de transação no valor de R$ 15 mil, a ser revertida ao fundo do meio ambiente. O réu não aceitou. Em 1º de dezembro do ano passado, o promotor Ruano Fernando da Silva Leite, da Promotoria de Justiça de Poções, denunciou Joelson e pediu a prisão preventiva dele. Na denúncia, o promotor registrou que ele é "contumaz" na prática de crimes em diversas unidades da federação. A Justiça decretou a prisão de Joelson em dezembro do ano passado. Até o fechamento desta reportagem, o MP da Bahia não tinha informação sobre Joelson ter sido preso.
- Em São Paulo, ele responde ao menos a um processo pela prática de caça não autorizada. E, segundo o MP daquele Estado, a pedido de promotores, em agosto de 2022, foi solicitada abertura de nova investigação contra Joelson.
- Em Pernambuco, tem ocorrência de crime ambiental.
- No Piauí, Joelson responde ao menos a um procedimento por crime ambiental depois de ter sido abordado pela Polícia Militar.