Durante a investigação do caso no qual dois homens foram espancados no depósito de um supermercado em Canoas, na Região Metropolitana, a Polícia Civil identificou pelo menos 10 episódios nos quais outras pessoas relatavam algum tipo de agressão ou constrangimento em unidades da rede Unisuper no município. O inquérito concluído nesta quinta-feira (15) indiciou cinco seguranças e dois ex-funcionários do estabelecimento por tortura – seis deles ainda responderão por extorsão mediante sequestro e dano.
Segundo o delegado Robertho Peternelli, da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), a polícia pesquisou ocorrências relacionadas à mesma rede de mercados comunicadas nos últimos dois anos. O policial não detalhou os casos, pois informou que estão sendo averiguados por outras delegacias. No entanto, relatou que pessoas disseram ter sido agredidas em diferentes situações. Uma mulher contou ter sido levada até o depósito, por suspeita de furto, e ter sido obrigada a tirar a roupa no local. Segundo o delegado, os casos foram registrados em mais de uma unidade do mercado.
— Conseguimos pinçar pelo menos 10 crimes registrados com relação a agressões praticadas por seguranças da empresa privada contratada pelo supermercado. Não era um caso isolado. Houve uma escalada da violência. Pessoas que relataram um soco por não estarem com máscara em período de pandemia. Num primeiro momento eram socos, alguns relataram também terem sido levados para o depósito. E nós chegamos na nossa investigação, que teve todas as agressões que conhecemos — diz o delegado.
Segundo o delegado, embora o inquérito não investigue esses casos anteriores, foi realizada essa busca para tentar compreender se essa prática já era comum no local e entender a participação de cada um dos envolvidos.
— Existem relatos nesses históricos que citam a mesma empresa (de segurança). Nós não aprofundamos, mas trouxemos essas ocorrências para entender o contexto. Verificar se era um caso realmente pontual. Ao pesquisarmos, verificamos que era um modus operandis para coibir esse tipo de furto. Nosso trabalho foi tentar trazer à tona esse caso para interromper esse ciclo de violência. Que seja o primeiro passo para que se dê continuidade nas ações cíveis. Que os supermercados, não só esse, e outras empresas de segurança também se adequem ao nosso ordenamento jurídico — afirma o policial.
O supermercado Unisuper se manifestou sobre a conclusão do inquérito, informando que está revendo os protocolos de segurança e de conduta (confira a nota no fim da reportagem). Segundo a Polícia Federal, a empresa Glock, que realizava segurança para a rede de supermercados, não teria registro para esta atividade, o que é obrigatório.
“A Polícia Federal realizou diligências que comprovaram o exercício das atividades de segurança privada de modo totalmente irregular e iniciou o processo administrativo de encerramento das atividades da empresa, que culminará na cassação do registro de seu CNPJ. Os respectivos processos criminais são de responsabilidade da Justiça Estadual”, informou a PF em nota.
Provas coletadas
Segundo o delegado, as principais provas obtidas durante a investigação foram os depoimentos das vítimas e as imagens recuperadas por meio de perícia. A partir disso, foi possível apontar a ação de cada um dos investigados. Apesar de terem permanecido em silêncio, conforme o responsável pelas investigações, tanto os cinco seguranças como o gerente e o subgerente confirmaram que eram eles mesmos que estavam no local. Ainda assim, a polícia solicitou uma perícia de comparação de fotos tiradas dos suspeitos com as imagens dos vídeos.
Com relação ao crime de extorsão mediante sequestro, a polícia obteve um recibo de pagamento de R$ 644 ao supermercado. O horário no qual ocorre o pagamento, segundo o delegado, coincide com a liberação das vítimas.
— Isso também nos fez entender como consumado esse crime de extorsão mediante sequestro. Eles só foram liberados após o pagamento. Elas só pararam porque pagaram um valor completamente superior ao valor que eles deveriam com relação àquelas carnes que estavam sendo furtadas naquele supermercado — diz Peternelli.
Crime chocante
A brutalidade das agressões chocou até mesmo a polícia, conforme Peternelli. As vítimas foram agredidas por cerca de uma hora com socos, chutes, além de golpes com pedaços de madeira e pallets. Eles também teriam sido ameaçados com um martelo.
— Choca pela desproporcionalidade de um furto de uma picanha. E uma agressão que não era mais para recuperar o objeto. O objeto já tinha sido recuperado. Nos chocou a quantidade, o tempo que eles ficaram dentro daquele local, sendo agredidos, ameaçados. Em nenhum momento reagiram ou esboçaram reação. Logo após as agressões, as risadas, as comemorações, as fotos. Isso mostra um total desprezo pelas vítimas que estavam ali — diz o delegado.
A gravidade das lesões também foi relatada no inquérito policial, já que uma das vítimas chegou a ficar em coma induzido. Conforme o delegado, laudos médicos comprovaram fraturas no nariz e na mandíbula, além de muitas lesões nas mãos. O homem que foi internado necessitou ser submetido a uma traqueostomia, e ainda hoje apresenta dificuldades na fala e na motricidade das mãos.
— São crimes muito graves que foram praticados. A todo momento ameaças eram proferidas, para que não retornassem àquele local. Eles pesquisavam, faziam consultas, tiravam fotos. Eram ameaças de morte. Uma das vítimas chegou a narrar que eles teriam dito que levariam o corpo para jogar num lago. Então, na verdade, foram vários tipos de ameaças nesse tempo todo. Existiu essa possibilidade de a morte ter acontecido. Felizmente eles conseguiram sair do local, conseguiu buscar ajuda médica, se recuperar dentro do possível — afirma o delegado.
Ofensas raciais
O segundo homem a ser levado para dentro do depósito e ser agredido, que é negro, relatou aos policiais que foi xingado com ofensas racistas. No entanto, conforme o delegado, não foi possível identificar qual investigado proferiu as ofensas, por isso não houve indiciamento por injúria racial. Ainda assim, a polícia citou no inquérito o racismo estrutural.
— No momento em que a primeira pessoa foi abordada, que era quem efetivamente estava participando do furto, essa pessoa disse quem estava com ela. Quando eles chegaram no veículo e viram que era um negro, teriam comentado: “Tinha que ser coisa de negrão”. Apesar de serem distribuídas entre os dois, as agressões mais violentas foram em cima dessa segunda pessoa. As agressões que culminaram até com o estado de coma. Fizemos um apanhado, um estudo, com relação ao racismo estrutural — diz o delegado.
O homem chegou a ter cinco dentes quebrados e precisou ser colocado em coma induzido. No relato dele à polícia, informou que a todo tempo os dois eram ameaçados de morte.
O furto
Segundo o delegado Peternelli, deve ser repassado para outra delegacia o caso de suspeita de furto por parte das vítimas das agressões. O policial diz que algumas questões precisam ser aprofundadas neste ponto. É preciso esclarecer, por exemplo, quem estaria subtraindo os produtos, já que um dos agredidos estava em um carro, na rua, até ser levado pelos seguranças ao depósito — ele nega ter auxiliado nos furtos. Como havia outras peças de carne no veículo, é preciso saber a origem desses produtos e se eles podem ter sido furtados de outros estabelecimentos.
A investigação vai precisar apontar também se o furto chegou a ser consumado ou não, já que o homem foi abordado ainda dentro do mercado, embora estivesse com as peças de carne sob as roupas. O tempo transcorrido desde outubro e o fato de que informações, como quais seriam e o valor dos produtos que estariam sendo furtados, não terem sido repassadas à polícia deve dificultar essa apuração.
— Não temos um lado, a polícia como um todo quer apurar todos os crimes que aconteceram — diz o delegado.
Os envolvidos
Os sete investigados pelo crime foram identificados pela Polícia Civil e estiveram na delegacia de Canoas. No entanto, preferiram permanecer em silêncio e só se manifestar em juízo. Jairo Estevan da Veiga era subgerente do supermercado e Adriano Luginski Dias trabalhava como gerente.
Entre os suspeitos, cinco são seguranças, sendo três deles policiais militares. São investigados os soldados Gustavo Henrique Inácio Sousa Dias e Romeu Ribeiro Borges Neto, que ingressaram na Brigada Militar em 15 de março de 2021 e estão em estágio probatório, e um policial aposentado, o primeiro-tenente da reserva Gilmar Cardoso Rodrigues.
A Brigada Militar informou que abriu um inquérito policial militar para apurar a conduta dos envolvidos e que os dois soldados foram enviados para serviço administrativo durante a investigação do caso.
Contrapontos
O que diz a defesa dos cinco seguranças e da Glock
Willian Alves, advogado que representa os cinco seguranças, informou que ainda não teve acesse ao indiciamento para poder se manifestar sobre o caso. Em nota anterior, informou que "os investigados estão contribuindo com as autoridades, inclusive por duas ocasiões se apresentaram espontaneamente em sede policial".
O que diz a defesa do gerente e do subgerente
Os advogados Ezequiel Vetoretti, Rodrigo Grecellé Vares e Eduardo Vetoretti também informaram que ainda não tiveram acesso ao indiciamento.
"Na condição de advogados de Jairo Estevan da Veiga e Adriano Luginski Dias, manifestamos o nosso respeito a todas as pessoas e instituições que atuam no presente caso. Por questões éticas e até mesmo em respeito à autoridade policial, nossa manifestação se dará exclusivamente nos autos", comentaram em nota enviada anteriormente.
O que diz o Unisuper
"Referente à conclusão do inquérito policial que apura as agressões ocorridas em uma de nossas lojas, manifestamos, mais uma vez, a nossa plena confiança na investigação conduzida pela polícia. Seguimos trabalhando na revisão de todos os nossos protocolos de segurança e conduta para que episódios como esse jamais voltem a acontecer. Reafirmamos o nosso compromisso com o respeito à vida e à dignidade da pessoa humana, bem como a nossa disposição para seguir colaborando integralmente com as autoridades."